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Bricolage da Escrita

Bricolage da Escrita

Viagem a Londres

Apenas como breve intróito, lamento dizer que não se tratou de uma viagem na verdadeira aceção da palavra. Não, não fui a Londres. Infelizmente não tenho fotografias para postar no Facebook junto da Tower Bridge, da Abadia de Westmisnter, do Big Ben, ou no meio de uma plateia a assistir a uma peça de teatro. Gostaria, naturalmente. Até porque é uma cidade que sempre admirei. Por tudo que ela comporta. Sobretudo por a considerar, na Europa, uma cidade verdadeiramente cosmopolita. Li, a propósito, que um qualquer dissidente cubano que teve a felicidade de viver muito tempo em Londres, teria escrito que a capital britânica refletia o mundo inteiro. Mesmo não tendo lá ido, confesso que concordo.

 

A minha viagem tem a ver com um acontecimento que acompanhei com alguma curiosidade, especialmente na imprensa escrita: a recente eleição de um muçulmano para mayor da cidade de Londres. Eu sei que isso já foi há alguns dias, mas mesmo assim, e porque não me pareceu que tivesse a atenção que efetivamente merecia na imprensa, pensei um pouco no assunto. Por outro lado, também não podemos olhar para os acontecimentos, apenas numa perspetiva de vedetização dos seus protagonistas.

 

De facto, a eleição de alguém, de origem muçulmana, para um cargo de grande responsabilidade política em plena Europa, num contexto mundial verdadeiramente adverso, dá que pensar. Com certeza que os londrinos não são destituídos de informação e de cultura. Por isso, mais admirável se torna o acontecimento.

 

Provavelmente também não se trata de um muçulmano qualquer. Sadiq Khan, assim se chama o vencedor, nasceu em Londres, sendo de origem paquistanesa e de família humilde. E, com certeza, não está ligado a fações radicais, nem acalentará a esperança de encontrar, no paraíso muçulmano, as setenta e duas (ou mais!) virgens! Estas (na sua pureza e candura) preferem aguardar a chegada triunfal dos paladinos do mal.

 

Pois bem, o tal senhor Sadik é alguém que apresentou, como candidato do partido trabalhista, um programa para a cidade de Londres, no qual os eleitores daquela grande cidade acreditaram (57% dos votantes), contra as propostas de Goldsmith, um conservador de origens aristocráticas e de poder económico, e que obteve 43% de votos na respetiva eleição.

 

Aqui, o importante, não é o só o facto de ser um muçulmano a candidatar-se a mayor de Londres; até podia ser um hinduísta ou outro de qualquer confissão religiosa ou nacionalidade. O que me parece digno de nota, é o significado da mensagem que o ato, em si, representa.

 

Em primeiro lugar, através da eleição de Sadiq Khan, Londres dá uma lição de cidadania mundial. Mesmo já tendo sido vítima de ataques terroristas perpetrados por radicais muçulmanos, e ainda que estejam bem vivos na nossa memória os ataques violentos a outras cidades por esse mundo fora e com origem no mesmo grupo radical muçulmano, a verdade é que os londrinos apostaram num indivíduo que professa a fé do islão. Ele próprio o assumiu publicamente.

 

Parece-me, em segundo lugar, que esta eleição merecia um maior impacto na imprensa nacional e internacional. Afinal, trata-se, penso, da demonstração por parte dos cidadãos de Londres, de que é possível conviver numa comunidade que respeite todos, independentemente das diferenças religiosas, culturais, sexuais ou outras. Emerge, assim, desta eleição, a afirmação de valores universais consubstanciados no exercício de uma cidadania global. Simultaneamente, a eleição de Sadiq, é um exemplo paradigmático de que não devemos olhar para os muçulmanos como se fossem todos uma bomba em potência prestes a explodir em qualquer lugar.

 

Vejo, em terceiro lugar, na eleição de Sadiq Khan, uma espécie de manifestação do Homo Globalis; da vitória do Homem sem fronteiras socioculturais ou, pelo menos, cada vez mais esbatidas. O caso de Barak Obama é, no essencial, e salvaguardando as devidas distâncias, muito parecido ao de Sadiq.

 

Concluiu-se, em quarto lugar, que da eleição daquele homem muçulmano não resultará uma onda de radicalismo e de violência. Os londrinos não estarão à espera, certamente, de que Sadik seja capaz de se aliar aos muçulmanos radicais para destruir os principais símbolos culturais e económicos de Londres. Numa das entrevistas, não deixa dúvidas: “Passei a vida toda a lutar contra o extremismo e o radicalismo…”. A sua eleição pode, em última instância, assumir uma dimensão pedagógica e ajudar a diminuir o poder de influência dos grupos fundamentalistas sobre as camadas sociais mais jovens.

 

Londres afirma, de forma categórica, os valores ocidentais face a uma fação de radicais muçulmanos para os quais nem sequer há valores. Foi uma grande “lição” dos londrinos a esses grupos extremistas (se é que eles recebem lições de alguém), ao permitirem que uma pessoa pertencente a uma minoria muçulmana tivesse a oportunidade de ascender, com base numa eleição democrática, a um cargo de grande responsabilidade.

 

Julgo, até, que outros países alegadamente democráticos, onde ocorrem casos frequentes de xenofobia, podem ver neste exemplo, a materialização de uma cultura aberta e tolerante e sem medo da diferença. Há um princípio basilar que se deveria impor como universal: não há culturas superiores nem inferiores, mas tão-somente, diferentes.

 

Assim, enquanto uns lutam por ideais estapafúrdios e sem qualquer respeito pela vida, outros acreditam, felizmente, que é possível a construção de um mundo mais humano, solidário e respeitador das diferenças. Um exemplo, no mínimo, interessante.

 

Jota Eme

 

Minha querida Facebook

Sim, trato - te, intencionalmente, no feminino e carinhosamente. Espero que não te importes. Podia fundamentar a minha opção, mas levar-me-ia muito tempo e tornaria a missiva muito longa. E, sabes, eu já percebi que não gostas de coisas densas e, muito menos, de cartas à moda antiga. Demasiado démodé, não é?! Além de mais, também não tens tempo para ler. Eu compreendo. Preferes a celeridade dos acontecimentos, porque o mundo tem pressa, demasiada pressa.

 

Conheço-te, minha querida Facebook, como tu muito bem sabes, há relativamente pouco tempo. Lembro-me, como se fosse hoje, quando alguém me falou de ti. Que valia a pena conhecer-te. Eu acreditei - não tinha motivos em contrário - e resolvi, um dia, por pés ao caminho, que é como quem diz, os dedos no teclado do computador. Conhecer- te de perto, portanto. Abeirei-me de ti, um pouco timidamente, e logo me pediste que me identificasse. Até aí, muito bem. Afinal, ainda era um estranho. Não se entra de qualquer modo no mundo do outro. Claro. É razoável, pensei. Ao mesmo tempo, solicitaste-me outros dados: morada, habilitações, data de nascimento e, julgo, outras informações que já não tenho presente. Aliás, em termos de memória, fui percebendo, à medida que nos fomos conhecendo, que és inigualável. Perfeita, até. Voltando um pouco atrás, assenti, então, fornecer-te os elementos que me pediste, porque, de outra forma, não te poderia conhecer.

 

Hoje, minha querida, olhando para trás, torna-se imperioso, pelo menos para mim, fazer um balanço do nosso relacionamento. Sabes, apesar de quase parecer anacrónico, ainda gosto de parar para refletir. Não tanto como deveria, mas isso são outras contas do rosário com as quais não te quero incomodar.

 

Esta minha pequena experiência contigo, minha querida Facebook, permitiu-me concluir que talvez não sejamos suficientemente compatíveis para prolongar a nossa relação. Não vale a pena insistir. Sabes, um dia, alguém me disse que não podemos andar sempre na rotunda; temos de tomar uma saída. Com efeito, permanecer na rotunda pode originar em nós tendências borderline (perdoa-me o exagero), para utilizar uma expressão dos especialistas do comportamento. Por isso, compreenderás, como é imperioso para mim, sair da tua vida.

 

Perguntar-te-ás, minha querida, o que me levou, objetivamente, a tomar a decisão de refletir sobre o nosso relacionamento. De facto, até ao momento, ainda não fundamentei tal atitude. Vamos ver se o consigo fazer sem te magoar. Porque, apesar de tudo, continuo a nutrir por ti alguma simpatia e respeito. Como já reparaste, tenho-te tratado, recorrentemente, por “querida”. Afinal, reconheço, proporcionaste-me bons momentos e ensinaste-me algumas coisas. Estou-te grato, naturalmente, por isso.

 

Para ser honesto contigo, minha querida Facebook, cansei-me um pouco da tua tendência para, como por magia, me absorveres no que para ti é importante. Por vezes, exageras na repetição. Regularmente, mostras-me receitas, resorts, paisagens, arte, humor, frases alusivas à vida, à morte, à educação, à religião, à ciência, à filosofia, à política; queres que eu veja, em catadupa e em simultâneo, uma multitude de conselhos, os amores e desamores de gente alegadamente famosa, mas também o que pensa este e o que diz aquele sobre qualquer assunto. Também, do alto do teu altruísmo, fazes peditórios (não sei se autênticos) a favor de alguém carenciado, insurges -te contra as injustiças sociais, ao mesmo tempo que te preocupas com a saúde, dando a conhecer os benefícios de vários tipos de chá e de sumo, quase me convencendo, neste particular, que se os tomar me torno imortal. Dás -me títulos e artigos de jornais e revistas do país e do mundo como se pretendesses que conheça tudo de uma só vez. E eu não consigo.

 

Lembras-me com frequência dos aniversários dos amigos como se eu – com todo o respeito pelos que tem a infelicidade de sofrer da doença - já tivesse Alzheimer. Insistes, quase inusitadamente, que eu talvez conheça fulano e beltrano, só para satisfazer ainda mais o teu ego e o teu amor incomensurável pela quantidade. Até na astrologia te meteste com insistência: sabes o que me vai acontecer no futuro, como será a minha aparência física, e as alegrias que ainda me vão abraçar. Com isso, nunca me assustaste: previsivelmente a aparência é sempre interessante e o futuro é sempre risonho! Quanto te reportas ao passado tens o cuidado de o associar também ao exercício de uma profissão simpática e, tal como no futuro, a uma qualquer parecença física apreciável. Eu sei que também valorizas a brincadeira, mas brincar sempre da mesma maneira e muitas vezes, começa a ser enfadonho. Chegaste também ao ponto de me dizer quais são os meus verdadeiros amigos, as minhas qualidades que eles mais apreciam, o meu QI, o significado do meu nome, as frases e pensamentos que melhor me caraterizam… que pretensiosismo o teu!

 

Mostras-me fotografias de perfil, mas também de costas e de frente, de pé e sentado, no campo ou na praia, na cozinha e na sala, com o cão e com o gato. Por vezes, caí na tentação de ir na tua conversa. Confesso que também gosto de postar umas fotografias! De vez em quando, sim. Depois, exibes-me curiosidades e habilidades de gente famosa e de gente anónima; dás-me imagens e textos da desgraça humana - de preferência com cenas bem dramáticas - ao ponto de chegar a recear que me instiles algum tipo de fascínio pelo mórbido. Alertas-me para vídeos que exigem, previamente, para poderem ser visionados, injeções de publicidade que só contribuem para me tornar ainda mais consumista e consumido.

 

Convidas-me, no fundo, a ver tudo como se não quisesses, obcecadamente, que tenha tempo para mais nada. Nessa altura, fazes-me sentir um voyeurista insaciável. Também não quero. E, como se não bastasse, atrais todas as atenções: açambarcas as pessoas de tal forma, que não passam sem ti, em qualquer sítio: no restaurante, no comboio, nas escolas, nos centros comerciais e, pior do que isso tudo, nas próprias casas. Tornaste-te uma deusa das chamadas redes sociais que, para teu contentamento, muitos adoram sem reserva. Por vezes, pareces, desculpa a comparação, uma espécie refinada Big Brother! Mais: a obsolescência é a marca distintiva da tua natureza. Como a vida dos objetos de consumo, a vida útil da tua informação, dissolve-se vertiginosamente.

 

Sabes, minha querida Facebook, é difícil conviver com alguém que vai aniquilando o diálogo entre as pessoas; que tira, muitas vezes, bons minutos de sono; que impede muita gente de se sentar atempadamente à mesa com os seus familiares; que leva teimosa e constantemente a adiar, pelo menos por alguns momentos, compromissos profissionais e sociais; que condiciona o gosto de olhar para as ditas pequenas coisas; que causa algum desconforto, quando, desmesuradamente, ocupa as pessoas que, noutras circunstâncias, poderiam participar em acontecimentos mais agradáveis.

 

Como é evidente, minha querida, tens uma tendência para acantonar os sentimentos das pessoas à pseudoestética dos stickers e das imagens emoticon, eliminando, sem quase darmos por isso, a beleza insubstituível para os humanos, do abraço físico, da carícia tocada, do olhar direto, do ruído da palavra. Tudo o que fazes tem como objetivo, dissimuladamente, alimentar e servir o sequioso “capitalismo estético”: alindar, com o supremo propósito de consumir! Esse é o teu primeiro e último foco. Identificas-te, em demasia, com tudo que carateriza a sociedade hiperconsumista. Em prol, portanto, do homo consumericus. É uma opção tua.

 

Não quero criar o risco de ficar cada vez mais passivo, conformista, só vendo e ouvindo ao longe, confortavelmente no aconchego de qualquer lugar, o que os outros dizem, mostram ou fazem. Já reparaste como corro sérios riscos de esquecer a essência da vida? Tornaste-te demasiado egocêntrica e monopolizadora para mim, minha querida Facebook. Sei que tens algumas virtudes, mas são muito poucas comparativamente a alguns dos teus inaceitáveis defeitos. Sei, ainda, que tens muitos e indefetíveis apaixonados e, por isso, não vais sentir a minha falta. Ainda bem. Fica, aqui, no entanto, a promessa: se me arrepender, voltarei para ti. Tenho a certeza, se for o caso, que me receberás de volta, sem ressentimentos, e me perdoarás a precipitação.

 

Até um dia, minha querida Facebook. Sem qualquer ironia, desejo-te muitos êxitos. Não fiques triste. Admito, mesmo assim, visitar-te. Quando? De vez em quando. Não sei. Afinal, apesar de poucos, temos amigos em comum. Vamos tentar preservá-los.

 

P.S. Não te preocupes em dar-me uma resposta. Sei que tens outras prioridades. E respeito.

 

Jota Eme

CTT vs chinese shops

Um dia, pouco antes da hora do almoço, dirijo-me aos Correios e Telecomunicações de Portugal (CTT) a fim de enviar uma simples missiva. Uma daquelas coisas que, graças á proliferação das novas tecnologias de informação e comunicação se tornam um ato cada vez mais raro. Olho para a máquina colocada estrategicamente à entrada, carrego no botãozinho e obtenho a senha com o número que ditará a minha vez para ser atendido. Como estão bastantes pessoas à minha frente (parece que toda a gente se lembrou de ir aos correios nesse dia e àquela hora), começo a distrair-me com o que vejo em meu redor. Olho, reparo mais uma vez, e surpreendo-me com a panóplia de produtos que estão ali à minha disposição. Será que me enganei?! Não, não posso, pensei. Afinal, já vim aqui mais vezes com o mesmo propósito. Desconfiado, ainda, olhei de soslaio, e reparei que todas as pessoas tinham nas suas mãos o que era expectável ser apropriado ao sítio onde me encontrava. Fiquei mais descansado e, ao mesmo tempo, mais descontraído para continuar a apreciar a multitude dos produtos que se aconchegavam nos diversos escaparates: livros, porta-chaves, telemóveis low cost, carteirinhas para criança, jogos interativos ou qualquer coisa do género, brinquedos, dinossauros enjaulados em caixas de papelão com janela plástica e com desconto de 50%, CD´s e, provavelmente, mais alguma artefacto de que, muito sinceramente, não me recordo. À nossa disposição, uma hiperescolha.

 

Enquanto me distraía a olhar de perto todas as curiosidades do espaço CTT, como se estivesse a ver uma montra na rua ou num qualquer centro comercial (uma espécie de show Windows), ocorreu-me que tinha de preencher o endereço no meu pequeno envelope. Procuro, para o efeito, um espaço, algo parecido com uma pequena mesa, mas não encontro. Tanta coisa, e não há uma mesinha para escrevinhar um simples endereço?! Bom, pensei, quando chegar a minha vez, preencho ao balcão. Absorto nesta pertinente elucubração, o sinal sonoro que acabava de ouvir fez-me levantar os olhos para aqueles demonstradores eletrónicos que, agora, anunciavam, cintilantes, numa luz avermelhada (pareceu-me dessa cor), o número que constava do meu frágil papelinho. Apresso-me, cumprimento quem me receciona, e vou avisando a simpática senhora que ainda me falta preencher o endereço. Pôs-me à vontade, e eu lá procedi, ali, no balcão, ao preenchimento do nome do destinatário e morada, bem como o campo reservado ao remetente. Depois de cumprida a minha tarefa, a tal senhora, ao mesmo tempo que me pegava no envelope, perguntava-me se não queria comprar uma cautela. Surpreendido, ocorreu-me (vá-se lá saber a razão) que a “oferta” devia fazer parte do cumprimento dos seus objetivos. Lá assenti em comprar a dita cuja, não sem antes a questionar se tinha, por acaso, alguma com a terminação no número 13! Procurou, e… voilà… tinha sim senhor! Não há mesmo nada que os correios de Portugal não tenham, pensei. Quase, quase, como nas chinese shops!

 

Qualquer dia, estou a imaginar-me a dizer alguma coisa do género a um(a) amigo(a): - pá, espera aí um pouco, vou ali aos CTT, estou a precisar de comprar uns boxers! Muito provavelmente, a reação poderá ser do género: - também te faço companhia, ouvi dizer que têm por lá umas promoções interessantes de produtos regionais!

Jota Eme

DESAFIOS DA ESCOLA

Os exames nacionais, concretamente no ensino básico, tem constituído, pelo menos nos últimos tempos, uma prioridade em torno dos temas a discutir na educação. O problema, quanto a mim, é que o foco continua, exageradamente, a ser colocado nos resultados, em detrimento de uma análise e reflexão alargadas em torno não só do papel da escola na sociedade atual, mas também, do papel/função e perfil do docente, da qualidade do processo de ensino e de aprendizagem, dos conteúdos programáticos, entre outros. Obcecadamente continuamos em frente, sem a preocupação de construir verdadeiros alicerces capazes de sustentar e fundamentar as opções da ação educativa rumo ao sucesso educativo que sistemática e recorrentemente se apregoa. Caminhamos desalmada e inexoravelmente, como se não houvesse a necessidade de fazer uma pausa para expurgar o que está manifestamente mal e reforçar e/ou robustecer o que está bem; como se a educação pudesse prescindir de uma discussão alargada envolvendo organismos, instituições e diferentes atores, designadamente os docentes, como é natural. Uma tendência continuada, de sobranceria política, que tardamos em corrigir. E assim, não vamos lá.


Com exames ou sem exames, com provas de aferição ou sem elas, continua, teimosamente, por se fazer o essencial. Como na alegoria da caverna de Platão, continuamos a preferir viver no mundo das sombras receando encarar a luz. Este caminho é sempre mais doloroso. Concluindo, então: o reino do facilitismo é, afinal, democraticamente universal e bem mais cómodo.


Há que fazer apostas sérias na educação, começando, talvez, por clarificar o que pretendemos da escola. Sem se perceber qual deve ser o objetivo e missão da escola na sociedade atual é difícil delinear uma estratégia concertada para responder aos desafios do processo educativo em geral. Julgo que grassa ainda muita confusão em torno da noção e missão da escola. Numa espécie de macro-definição, diria que a escola tem como missão ou finalidade a formação do aluno enquanto cidadão numa dupla vertente: instrutiva e formativa; apto a responder às exigências da sociedade, numa perspetiva crítica e construtiva. A escola tem, assim, como missão, formar o aluno para a autonomia, para o espírito crítico, analítico e reflexivo; para a solidariedade, a cooperação e a participação.

 

Urge, cada vez mais, fazer da escola um lugar onde se possam conciliar os valores da eficácia, autonomia e cidadania; de espaço de aprendizagens não só estritamente orientadas para os resultados académicos mas, concomitante e complementarmente, de aprendizagens transversais, de modo a garantir que a escola seja também uma oportunidade de inclusão (de todos), de humanização, de formação de pessoas. E se os exames conseguissem avaliar estas aprendizagens, talvez assumissem outro tipo de pertinência. E é possível?! Provavelmente, sim.


A obsessão de transformar a escola por decreto tem contribuído, decisivamente, para a limitar profundamente a sua autonomia, conditio sine qua non da sua afirmação enquanto local e espaço de produção e disseminação de conhecimentos. A autonomia não se decreta. Ela exige construção dinâmica e colaborativa entre diversos atores na própria escola. Exige, ainda, que se respeite a escola como locus de discussão e reflexão em torno dos seus próprios problemas e das possíveis soluções por si encontradas para os ultrapassar ou minimizar. É necessário, para que a escola vá conquistando a sua autonomia, que a administração central não a sufoque com as alegadas prerrogativas normativas, digamos assim. Partimos do princípio que se a escola exige autonomia é porque está na disposição de assumir as suas responsabilidades. 


Por bastante que evoluam as tecnologias de apoio à educação, nenhuma escola se constrói sem professores. Por bastantes voltas que se dê, e alterações que queiramos fazer no sistema educativo, nada substitui ou substituirá os professores. São eles que dão, através da relação pedagógica que estabelecem com os seus alunos, dimensão humana à educação. Urge, pois, refletir em torno de um dos fatores mais importantes da qualidade da educação e do sucesso educativo dos alunos. Uma das questões que se deve colocar é: qual a função (ou funções) e perfil do docente perante as exigências da escola atual? Como em qualquer profissão, o que se exige, antes de tudo, é vocação. Com efeito, de nada adianta mais formação, exigências ao nível do trabalho colaborativo, da dedicação, motivação, se os mesmos não sentirem, pelo menos minimamente, o “chamamento” vocacional. Por outro lado, impõe-se como crucial, que os professores acreditem em si, nas suas potencialidades para desenvolver o seu trabalho com impacto na qualidade do processo de ensino e de aprendizagem e nos resultados escolares dos seus alunos. Não há nada pior do que tentar fazer passar a mensagem que os professores são incapazes de operar a mudança qualitativa por si próprios. Impõe-se, ainda, que os docentes reflitam cada vez mais as suas práticas com o propósito firme de as melhorarem, evitando escudarem-se exclusivamente em fatores exógenos para explicar o insucesso escolar. Importa que não receiem prestar contas, consciencializando, cada vez mais, o dever de o fazer. Há direitos dos docentes que devem ser salvaguardados, mas também existem deveres que consubstanciam a responsabilização e facilitam a sua avaliação. Um professor consciente dos seus direitos mas também dos seus deveres, e que assume o seu papel de forma determinada e empenhada, não receia a avaliação. Poder-se-á levantar aqui a questão de saber que tipo de avaliação se pretende. Não é minha intenção, desta vez, refletir sobre este tema. Mas sou apologista da sua necessidade, suportada, claro está, em critérios justos e rigorosos, com o intuito de contribuir para a qualidade do trabalho docente e/ou desenvolvimento profissional, e não com objetivos meramente economicistas. Daí a necessidade de definir, como se disse anteriormente, as funções e o perfil do docente; clarificar os seus deveres profissionais, sumariamente falando.


Hoje, sabemos como é fácil ter acesso ao conhecimento. Por vezes, o difícil, é selecionarmos aquilo que nos interessa. Talvez seja uma questão metodológica e/ou de capacidade para aprendermos a distinguir o essencial do acessório. E esta dificuldade é, por maioria de razões, inerente aos alunos. E neste sentido, o papel do professor é cada vez mais exigente. Com efeito, compete-lhe, digo eu, assumir-se como “facilitador das aprendizagens”: como recurso catalizador da aprendizagem autónoma; capaz de orientar o aluno a aprender por si; capaz de promover a investigação; capaz de proporcionar o trabalho de grupo como mais uma forma de construção (solidária e colaborativa) do conhecimento, mas também como oportunidade de desenvolver valores de solidariedade, de cooperação, entre outros; capaz de promover a autoavaliação no seio dos alunos, proporcionando-lhe a corresponsabilização pela sua própria aprendizagem; capaz de aceitar a dúvida, a incerteza, as dificuldades, os retrocessos; capaz de fomentar a interdisciplinaridade dos saberes … O professor deve assumir-se, pois, como uma espécie de autoridade-serviço presencial, um sujeito entre sujeitos, um aprendiz entre aprendizes. Naturalmente que não se exclui, aqui, o papel do professor como transmissor de conhecimento. Há sempre lugar para o desempenho, também necessário, desse papel. Com certeza. O importante é não confinar a sua ação, a uma espécie de exercício de “pedagogia bancária”. Hoje, insisto, parece-me que o docente tem de estar preparado para se afirmar como um recurso importante nas metodologias de estudo e de investigação que reforcem a autonomia do aluno na procura, acesso e construção do conhecimento. A afirmação da sua autoridade (não confundir com autoritarismo), passa pela assunção destas competências. Caso contrário, continuamos no seio de uma escola que, na perspetiva de Ivan Illich, na sua obra “Sociedade sem Escolas”, vai cumprindo um “ritual” “sagrado”, onde o “fieis” vão receber o “batismo” do “sacerdote”! Convoco, aqui, a propósito, S. Mollo, citado por M. Postic: “ O modelo de aluno ideal, pela sua passividade, pela sua obediência e pela sua docilidade, valoriza um modelo de professor autoritário, origem e fim da atividade pedagógica.” O importante é, então, termos a coragem de abandonar, paulatinamente, a pedagogia “magistrocêntrica”, procurando o exercício de uma pedagogia da autonomia que fomente a dialética entre o educando e o educador, ambos como pessoas em processo de interação, evitando, deste modo, o reducionismo pedagógico consubstanciado no docente como mero tecnicista e no aluno como recipiente de saberes.

 

 

Numa escola em que não há espaço para a promoção da dúvida, da interrogação, da liberdade de investigação e de construção do conhecimento por parte do aluno, não estamos longe do ensino livresco da idade medieval, em que a máxima assentava na famigerada expressão: “magister dix”! Parece até que, nesta matéria, estamos ainda na idade jurássica! Tudo muito lindo, dirão uns. É muito fácil teorizar, dirão outros. Utópico, enfatizarão, ainda, alguns. E haverá, naturalmente, também aqueles que, alegadamente mais pragmáticos, continuarão na senda das perguntas: e os exames? E os conteúdos programáticos? E o cumprimento das metas? E a formação dos docentes? E as tarefas burocráticas? E os alunos que não estão motivados e não querem saber de nada? E as famílias que não acompanham os seus educandos? E por aí fora. Eu responderia que é possível fazer melhor se estivermos (todos) mais disponíveis para a mudança construtiva e fundamentada. E mudar, nesse sentido, por vezes, não é nada fácil; habituados que estamos às sombras é muito árduo termos que enfrentar a “luz”: fere-nos demasiado (nem que seja temporariamente), e não estamos para isso. E a tutela também não. Por isso, voltamos ao início, que é como quem diz, à ideia de que o fundamental continua adiado. Por conta disso, a educação definha e ninguém se entende sobre o rumo (ou rumos) que a mesma deve tomar em prol dos alunos, dos professores, dos pais e encarregados de educação, do desenvolvimento do país e da construção da sociedade em geral.

 

Jota Eme

 

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