A EQUAÇÃO EXISTENCIAL
Parte-IV
Fugimos do tema de Deus porque é um assunto espinhoso e, também, porque Deus não encaixa na lógica sedutora do “mundo-mercado”, das soluções imediatas que alegadamente nos dão os mestres de autoajuda para obtermos o “sucesso mundano”. Exemplo paradigmático é aquele que nos relata Carlo Strenger, a propósito do sucesso retumbante de um livro intitulado o “ O Segredo”. A tese é de que tudo reside numa espécie de “lei da atração”. Assim, de acordo com esta tese, “ O Universo está construído de uma forma tal que quando pensamos com força suficiente em algo que queremos, o universo envia-no-lo (…) a maior parte dos exemplos (…) são muito mundanos (…) como perder peso, um carro novo ou umas boas férias (…) ”. Mas como os críticos do livro referem, a “tese é moralmente desprezível”. E porquê? “ (…) se tudo que acontece é função dos nossos pensamentos positivos ou negativos, os milhões de pessoas que morreram quer por perseguição política, quer por genocídio ou devido à fome devem-no ter provocado a si próprios e são, como tal, responsáveis pela sua própria morte.” O estranho (ou talvez não) é que muitas pessoas não se apercebem do embuste deste tipo de “solução” para os verdadeiros problemas da sua existência. Aquilo que pretensamente visa solucionar algumas das nossas supostas dificuldades existenciais, pode tornar-se, afinal, numa fonte de maior angústia e de frustração.
Agora, duas questões prévias: poderemos, através da razão, definir Deus? Será a ciência, em última instância, uma religião?
Numa recente entrevista concedida ao jornal “Expresso”, o Padre Anselmo Borges, a propósito da definição de Deus, remete-nos para o Evangelho segundo São João: “ no princípio era o logos, a razão, e Deus é razão.” E acrescenta: “ Para mim (…) Deus é razão (…) E se a fé não deriva da razão, à maneira das ciências matemáticas, para ser humana, não a pode contradizer.”
Se, para os ateus, Deus não é demonstrável ou definível, justamente porque não é alcançável pela razão e pela experiência, também a sua negação carece de fundamentos racionais, sólidos, verificáveis; a fragilidade racional e a impossibilidade experimental na demonstração da existência de Deus são também válidas para os defensores da sua negação. Com efeito, a razão, enquanto instrumento de conhecimento que afirma a existência de Deus, é justamente a mesma que nega a sua existência. Como alguns defendem, os ateístas, na sua forma mais apaixonada (quando sem pretensos triunfalismos), são a voz de Deus que se faz ouvir neles próprios! São eles que, afinal, espicaçando a fé do crente, a colocam à prova, contribuindo para a converter numa atitude interrogativa, não saciada; num processo de amadurecimento espiritual e ético, capaz de resistir, por essa via, a eventuais fundamentalismos e/ou fanatismos. Deus, sendo mistério, implica um espírito de busca (em mim e no outro), e não a acomodação a um conjunto de conceitos sobre Ele que responda preferencial e prioritariamente aos nossos interesses (muitas vezes, mesquinhos), à conceção de um Deus pessoal, ou a uma vida facilitada: sem obstáculos, sem sacrifícios, sem riscos.
O certo mesmo é que os ateus na sua pretensão de negar a existência de Deus podem, de algum modo, ajudar-nos a compreendê-Lo. Quase vão pelo caminho da chamada teologia negativa que, em termos simples, nega a possibilidade de “arrumar” Deus em conceitos, palavras e/ou imagens. Ou seja: Deus não se deixa enclausurar racionalmente; está muito para além da abordagem racional. Por exemplo: Deus não é Bom (é muito mais que isso); Deus não é perfeito (é muito mais que isso), Deus não é justo (é muito mais que isso), etc. Negando os atributos que comumente se atribuem racionalmente a Deus, os ateus estão, de algum modo, em sintonia com a teologia negativa que embora mais antiga, podemos encontrar em Santo Agostinho. Parece, uma vez mais, que estão mais próximos dos crentes do que eventualmente gostariam! De facto, Deus parece definir-se melhor pelo que se afirma acerca do que Ele não é. Talvez, deste modo, os ateus estejam a procurar Deus por outra direção, por outros caminhos. São também eles peregrinos em busca de Deus. Por outra via, provavelmente. Temos de admitir, parafraseando Carlo Strenger, que “ nenhuma crença humana está acima da crítica, nenhuma autoridade é infalível e nenhuma visão do mundo pode reclamar para si a validade última.”
A presunção em definir Deus através da razão, mas também a mesma (presunção) em negá-lo, decorre da falta de paciência para com Ele; da incompreensão pelo seu ocultamento, do nosso desejo incontornável em ver a sua face. Irrita-nos esta “mania” de Deus se esconder de nós, de não aparecer fulgurante e triunfante para demonstrarmos aos não-crentes que, afinal, tínhamos razão. Vaidade humana? Pois, talvez. Irrita-nos que não se deixe compreender nas nossas limitadas capacidades; queríamos representá-Lo através da nossa emproada “indumentária intelectual”. Talvez fosse mais fácil acreditar, se Ele tivesse uma página no Facebook onde fosse postando umas fotografias e uns vídeos do céu com a beleza inconfundível das paisagens de lá, da sumptuosa arquitetura dos edifícios rodeados de jardins celestiais, da felicidade suprema que as pessoas manifestam e da juvenilidade que todos apresentam. Nesse caso, de certeza que o número de “likes” disparava de tal forma, que estilhaçava o reino sedutor do quantificável! Provavelmente era, também, imbatível no número de “amigos”. A não ser que Deus, com as suas qualidades de omnipotente e de omnipresente, começasse a postar também umas fotografias de cada um de nós, especialmente do nosso verdadeiro “eu”. Nesse caso, talvez fosse a debandada geral, e Deus ficava, com toda a certeza, sozinho. Com jeito até eramos capazes de blasfemar contra Ele e dizer que, afinal, não era Deus; que se tratava de alguém que, pretendendo fazer-se passar por Ele, tinha, afinal, um perfil falso para nos ludibriar!
Queríamos, também, perceber a razão da existência da malignidade do mundo, do sofrimento dos inocentes. Pois queríamos. Esquecemo-nos, porventura, que o mistério alimenta e sedimenta o amor. Insuficiente explicação, dirão alguns. Claro, porque é demasiado humana, não é assim?! Não encaixa na nossa visão sempre sedenta de explicações simples para tudo, mesmo para Deus. Não é fácil separarmo-nos do nosso incorrigível materialismo; do palpável; da nossa falta de paciência com Deus; da nossa tendencial arrogância intelectual; de atribuir validade e existência apenas ao que é, na nossa perspetiva, inteligível.
Curiosamente, e parafraseando Tomás HalíK, a religião mais difundida nos nossos dias, é aquela que assenta no seguinte credo: “ eu posso não acreditar em Deus, mas tem de haver alguma coisa acima de nós.” E para o autor, isto chama-se, “ algoísmo”! Assim, parece-nos, o credo “algoísmo” é, para alguns, mais alcançável, mais razoável, mais sensorial, mais “inteligível”; no fundo, uma forma de admitir Deus por outra via (talvez cósmica?!), não se sabe.
Vejamos, agora, que tipo de paralelismos se pretende estabelecer entre a ciência e a religião, sobretudo quando privilegiamos nesta última, a descoberta contínua de Deus.
Não nos parece irrazoável admitir que, pela via da ciência, o homem procura também desvendar o “mistério”. Cada verdade que encontra é uma etapa para se aproximar de uma maior e mais completa. Citando de memória G. Bachelard, um epistemólogo francês, “o conhecimento científico é sempre um conhecimento aproximado”. E numa perspetiva quase poética diz, ainda, que “o conhecimento científico é um conhecimento que projeta sempre algures, sombras”. Isto quer dizer que essa forma de conhecimento se constrói como se cada etapa fosse um passo para ajudar a desvendar o mistério, a desocultar a verdade que não se deixa “apanhar” na sua plenitude. E assim, progressivamente - inferimos ainda nós -, o homem vai-se aproximando um pouco mais de Deus, do Infinito. Absurdo? Nem tanto. Com efeito, desvendar paulatinamente os mistérios do mundo e da vida é, para muitos, uma aproximação de Deus; das leis que explicam a obra que Ele criou.
O conhecimento científico foi galopante nos últimos anos e as condições de vida das pessoas, de um modo geral, melhoraram. E, mesmo assim, Deus não desaparece. Mais: na imprensa, saem notícias de escândalos financeiros e sexuais protagonizados por responsáveis das diferentes confissões religiosas. E as pessoas, apesar desses erros humanos, continuam a acreditar em Deus. Há uma proliferação de literatura e notícias que denunciam mistérios não desvendados pelas religiões, crimes palacianos no Vaticano, algum escárnio e mal dizer, etc. E, no entanto, as pessoas não desistem de acreditar em Deus.
Antony Fley, um filósofo britânico (1923-2010), e que durante quase toda a sua vida foi um dos mais ferozes ateístas (“ Durante mais de 50 anos, neguei não apenas a existência de Deus, mas também a existência de uma vida no Além”) converteu-se, em 2004, ao cristianismo. Num dos seus livros, concordando com Einstein, refere: “ … aquele que conhece a natureza, conhece Deus, mas não porque a natureza é Deus, mas porque o que a ciência procura com os seus estudos acaba por conduzir à religião.” Concluímos nós que, em última instância, a ciência procura a transcendência, o infinito, o desconhecido, o que está para além de toda a explicação; o fim último das coisas. E esta postura mantém acesa a procura do cientista, a sua demanda pelo sedutor mistério que encerra o Universo, mesmo que pelo caminho tenha de enfrentar escolhos. Não perde a “fé”, por isso. Mantém a esperança; sente-se intimamente seduzido por algo superior.
A ciência, em parte, é também um ato de fé: afinal, “acredita” que é capaz de ir cada vez mais longe, buscando a derradeira explicação da realidade; algo que está, ainda, para além de uma explicação racional ou experimental. Claro que, apesar desta analogia, não podemos querer que a ciência substitua Deus. É elucidativo o que, numa das edições do jornal o “Público”, escreve Frei Bento Domingues: “ … seria grossa asneira supor que Deus é o substituto da investigação científica…”. Pelo que se depreende, não podemos estar à espera que Deus seja a solução para todos os problemas das nossas vidas e do mundo. Com efeito, acrescenta ainda Bento Domingues: “ A ideia de um mundo criado supõe um mundo limitado e falível. Não vale a pena discutir se Deus não podia criar um mundo perfeito. Seria uma absurda réplica de Deus, Deus repetido.”
Mas retomemos a postura do cientista. O seu projeto pode servir, curiosamente, de comparação com o caminho que deve seguir o projeto existencial do crente em Deus. Pelo menos, na atitude, no exemplo da sua abnegação em encontrar o “absoluto”. O humanismo existencialista de raiz cristã é a escolha de um sentido para a vida que aponta para a descoberta da fé. Sim, a fé não é propriamente um dado adquirido, sem necessidade de “alimento”. O projeto do cristão é também a demanda pela verdade, pela justiça, pelo bem, pela dignidade humana. E este projeto é, acima de tudo, uma vivência que se vai revelando na esperança de encontrar o nosso significado último. Portanto, a procura de Deus remete-nos para um propósito, para uma finalidade, para um fundamento, para a justificação do nosso existir, para o otimismo existencial. E Deus revela-se no que de bom fazemos. E esta é a visão do existencialismo cristão que encontramos, por exemplo, em Kierkegaard ou em Gabriel Marcel. E como se justificam, então, as nossas más ações ou o mal de que somos vítimas? A essa obstinada questão só podemos responder através do livre-arbítrio, pois Deus dotou-nos também de liberdade, da possibilidade de fazermos a nossas escolhas. Quando não agimos em conformidade com o bem, aí temos, talvez, o Deus oculto; se preferimos, a existência de um obstáculo que não pode servir de pretexto para baixarmos os braços. Como saberíamos valorizar o bem, se não tivéssemos a noção do mal?!
Abramos, aqui, um parêntesis para dizer, ainda, que o mal no mundo nas suas múltiplas expressões, como a fome, a guerra, a exploração dos mais fracos e dos mais frágeis, resulta do exercício da própria liberdade do homem. Que diríamos de Deus se, eventualmente, nos tivesse criado de tal forma que não tivéssemos qualquer possibilidade de tomarmos opções; de sermos livres? Muito provavelmente dir-se-ia que Deus não foi justo porque nos impediu de ser livres. Se, como tantas vezes gostamos de afirmar e defender, a liberdade é um bem precioso, porque haveria Deus de nos privar desse bem? Com efeito, quanto a mim, a questão deverá ser colocada nestes termos: por que razão o homem não põe ao seu serviço e do próximo a liberdade que tanto estima? Porque não exerce a liberdade para o seu bem e o da comunidade onde está inserido? Qual é a responsabilidade de Deus no mau exercício que o homem faz da liberdade que Dele recebeu? É como se, por analogia, perguntássemos: que responsabilidades têm os pais que amando os seus filhos, os educam para serem livres nas suas decisões, que os ensinaram a não roubar e a não matar e, entretanto, já adultos roubam ou matam?
Centrando-nos, uma vez mais, no conhecimento científico, há nele um processo da descoberta da verdade como se se escondesse sempre o mistério, o oculto; algo que parecendo ignorar o cientista, o atrai, o impulsiona, o apaixona, o seduz. Parece haver, assim, também, um lado “estético” no saber científico; como se houvesse uma qualquer beleza suprema, um bem superior que misteriosamente arrebata e inquieta o cientista.
Talvez a fé em Deus a tenhamos de viver, também, numa dimensão estética; como se a fé fosse uma vivência na paixão, no fascínio da procura de Deus, enquanto razão ou sentido último da nossa existência. Parafraseando Kierkegaard, a fé é a esperança no mistério; é a aceitação incondicional, do insondável, de Deus. Essa esperança, sobretudo quando é plenamente aceite, emerge como fundamento de confiança num projeto existencial que tem um verdadeiro significado; que justifica o otimismo com que deve ser encarada a nossa jornada. Contrariamente ao existencialismo humanista ateu, o existencialismo cristão, não vê na liberdade e na finitude as causas de ansiedade, mas antes fontes de esperança paciente num projeto existencial de libertação da morte e do sofrimento, ainda que nos assole a angustiante dúvida (humanamente legítima) que já Cristo teve na Cruz: “ Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”
Alguns dirão que, uma vez mais, é tudo uma questão apenas de “fé”. No entanto, Antony Fley não concorda quando, a propósito, diz: “ a minha descoberta do Divino foi uma peregrinação da razão e não da fé.” Ou seja: pela razão, mesmo admitindo as suas limitações, se chega a Deus; razão e fé podem, parece-nos, coexistir.
Escusado será dizer que, esta modestíssima reflexão, não tem a pretensão de esgotar a problemática de Deus, do ateísmo ou da ciência. Muito, muito longe disso. Mas uma coisa é certa: a razão, enquanto instrumento de conhecimento, é inexaurível. Queiramos nós exercitá-la. Uma das condições é a predisposição e/ou abertura à dúvida. Como muito bem diz Descartes, “ se se quiser buscar (…) a verdade, é preciso que pelo menos uma vez na vida se duvide, o máximo que se puder, de todas as coisas.”
Para continuar (Parte- V)
Jota Eme