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Bricolage da Escrita

Bricolage da Escrita

A EQUAÇÃO EXISTENCIAL

Parte-IV

 

Fugimos do tema de Deus porque é um assunto espinhoso e, também, porque Deus não encaixa na lógica sedutora do “mundo-mercado”, das soluções imediatas que alegadamente nos dão os mestres de autoajuda para obtermos o “sucesso mundano”. Exemplo paradigmático é aquele que nos relata Carlo Strenger, a propósito do sucesso retumbante de um livro intitulado o “ O Segredo”. A tese é de que tudo reside numa espécie de “lei da atração”. Assim, de acordo com esta tese, “ O Universo está construído de uma forma tal que quando pensamos com força suficiente em algo que queremos, o universo envia-no-lo (…) a maior parte dos exemplos (…) são muito mundanos (…) como perder peso, um carro novo ou umas boas férias (…) ”. Mas como os críticos do livro referem, a “tese é moralmente desprezível”. E porquê? “ (…) se tudo que acontece é função dos nossos pensamentos positivos ou negativos, os milhões de pessoas que morreram quer por perseguição política, quer por genocídio ou devido à fome devem-no ter provocado a si próprios e são, como tal, responsáveis pela sua própria morte.” O estranho (ou talvez não) é que muitas pessoas não se apercebem do embuste deste tipo de “solução” para os verdadeiros problemas da sua existência. Aquilo que pretensamente visa solucionar algumas das nossas supostas dificuldades existenciais, pode tornar-se, afinal, numa fonte de maior angústia e de frustração.

 

Agora, duas questões prévias: poderemos, através da razão, definir Deus? Será a ciência, em última instância, uma religião?

 

Numa recente entrevista concedida ao jornal “Expresso”, o Padre Anselmo Borges, a propósito da definição de Deus, remete-nos para o Evangelho segundo São João: “ no princípio era o logos, a razão, e Deus é razão.” E acrescenta: “ Para mim (…) Deus é razão (…) E se a fé não deriva da razão, à maneira das ciências matemáticas, para ser humana, não a pode contradizer.”

 

Se, para os ateus, Deus não é demonstrável ou definível, justamente porque não é alcançável pela razão e pela experiência, também a sua negação carece de fundamentos racionais, sólidos, verificáveis; a fragilidade racional e a impossibilidade experimental na demonstração da existência de Deus são também válidas para os defensores da sua negação. Com efeito, a razão, enquanto instrumento de conhecimento que afirma a existência de Deus, é justamente a mesma que nega a sua existência. Como alguns defendem, os ateístas, na sua forma mais apaixonada (quando sem pretensos triunfalismos), são a voz de Deus que se faz ouvir neles próprios! São eles que, afinal, espicaçando a fé do crente, a colocam à prova, contribuindo para a converter numa atitude interrogativa, não saciada; num processo de amadurecimento espiritual e ético, capaz de resistir, por essa via, a eventuais fundamentalismos e/ou fanatismos. Deus, sendo mistério, implica um espírito de busca (em mim e no outro), e não a acomodação a um conjunto de conceitos sobre Ele que responda preferencial e prioritariamente aos nossos interesses (muitas vezes, mesquinhos), à conceção de um Deus pessoal, ou a uma vida facilitada: sem obstáculos, sem sacrifícios, sem riscos.

 

O certo mesmo é que os ateus na sua pretensão de negar a existência de Deus podem, de algum modo, ajudar-nos a compreendê-Lo. Quase vão pelo caminho da chamada teologia negativa que, em termos simples, nega a possibilidade de “arrumar” Deus em conceitos, palavras e/ou imagens. Ou seja: Deus não se deixa enclausurar racionalmente; está muito para além da abordagem racional. Por exemplo: Deus não é Bom (é muito mais que isso); Deus não é perfeito (é muito mais que isso), Deus não é justo (é muito mais que isso), etc. Negando os atributos que comumente se atribuem racionalmente a Deus, os ateus estão, de algum modo, em sintonia com a teologia negativa que embora mais antiga, podemos encontrar em Santo Agostinho. Parece, uma vez mais, que estão mais próximos dos crentes do que eventualmente gostariam! De facto, Deus parece definir-se melhor pelo que se afirma acerca do que Ele não é. Talvez, deste modo, os ateus estejam a procurar Deus por outra direção, por outros caminhos. São também eles peregrinos em busca de Deus. Por outra via, provavelmente.  Temos de admitir, parafraseando Carlo Strenger,  que “ nenhuma crença humana está acima da crítica, nenhuma autoridade é infalível e nenhuma visão do mundo pode reclamar para si a validade última.”

 

A presunção em definir Deus através da razão, mas também a mesma (presunção) em negá-lo, decorre da falta de paciência para com Ele; da incompreensão pelo seu ocultamento, do nosso desejo incontornável em ver a sua face. Irrita-nos esta “mania” de Deus se esconder de nós, de não aparecer fulgurante e triunfante para demonstrarmos aos não-crentes que, afinal, tínhamos razão. Vaidade humana? Pois, talvez. Irrita-nos que não se deixe compreender nas nossas limitadas capacidades; queríamos representá-Lo através da nossa emproada “indumentária intelectual”. Talvez fosse mais fácil acreditar, se Ele tivesse uma página no Facebook onde fosse postando umas fotografias e uns vídeos do céu com a beleza inconfundível das paisagens de lá, da sumptuosa arquitetura dos edifícios rodeados de jardins celestiais, da felicidade suprema que as pessoas manifestam e da juvenilidade que todos apresentam. Nesse caso, de certeza que o número de “likes” disparava de tal forma, que estilhaçava o reino sedutor do quantificável! Provavelmente era, também, imbatível no número de “amigos”. A não ser que Deus, com as suas qualidades de omnipotente e de omnipresente, começasse a postar também umas fotografias de cada um de nós, especialmente do nosso verdadeiro “eu”. Nesse caso, talvez fosse a debandada geral, e Deus ficava, com toda a certeza, sozinho. Com jeito até eramos capazes de blasfemar contra Ele e dizer que, afinal, não era Deus; que se tratava de alguém que, pretendendo fazer-se passar por Ele, tinha, afinal, um perfil falso para nos ludibriar!

 

Queríamos, também, perceber a razão da existência da malignidade do mundo, do sofrimento dos inocentes. Pois queríamos. Esquecemo-nos, porventura, que o mistério alimenta e sedimenta o amor. Insuficiente explicação, dirão alguns. Claro, porque é demasiado humana, não é assim?! Não encaixa na nossa visão sempre sedenta de explicações simples para tudo, mesmo para Deus. Não é fácil separarmo-nos do nosso incorrigível materialismo; do palpável; da nossa falta de paciência com Deus; da nossa tendencial arrogância intelectual; de atribuir validade e existência apenas ao que é, na nossa perspetiva, inteligível.

 

Curiosamente, e parafraseando Tomás HalíK, a religião mais difundida nos nossos dias, é aquela que assenta no seguinte credo: “ eu posso não acreditar em Deus, mas tem de haver alguma coisa acima de nós.” E para o autor, isto chama-se, “ algoísmo”! Assim, parece-nos, o credo “algoísmo” é, para alguns, mais alcançável, mais razoável, mais sensorial, mais “inteligível”; no fundo, uma forma de admitir Deus por outra via (talvez cósmica?!), não se sabe.

 

Vejamos, agora, que tipo de paralelismos se pretende estabelecer entre a ciência e a religião, sobretudo quando privilegiamos nesta última, a descoberta contínua de Deus.

 

 Não nos parece irrazoável admitir que, pela via da ciência, o homem procura também desvendar o “mistério”. Cada verdade que encontra é uma etapa para se aproximar de uma maior e mais completa. Citando de memória G. Bachelard, um epistemólogo francês, “o conhecimento científico é sempre um conhecimento aproximado”. E numa perspetiva quase poética diz, ainda, que “o conhecimento científico é um conhecimento que projeta sempre algures, sombras”. Isto quer dizer que essa forma de conhecimento se constrói como se cada etapa fosse um passo para ajudar a desvendar o mistério, a desocultar a verdade que não se deixa “apanhar” na sua plenitude. E assim, progressivamente - inferimos ainda nós -, o homem vai-se aproximando um pouco mais de Deus, do Infinito. Absurdo? Nem tanto. Com efeito, desvendar paulatinamente os mistérios do mundo e da vida é, para muitos, uma aproximação de Deus; das leis que explicam a obra que Ele criou.

 

O conhecimento científico foi galopante nos últimos anos e as condições de vida das pessoas, de um modo geral, melhoraram. E, mesmo assim, Deus não desaparece. Mais: na imprensa, saem notícias de escândalos financeiros e sexuais protagonizados por responsáveis das diferentes confissões religiosas. E as pessoas, apesar desses erros humanos, continuam a acreditar em Deus. Há uma proliferação de literatura e notícias que denunciam mistérios não desvendados pelas religiões, crimes palacianos no Vaticano, algum escárnio e mal dizer, etc. E, no entanto, as pessoas não desistem de acreditar em Deus.

 

Antony Fley, um filósofo britânico (1923-2010), e que durante quase toda a sua vida foi um dos mais ferozes ateístas (“ Durante mais de 50 anos, neguei não apenas a existência de Deus, mas também a existência de uma vida no Além”) converteu-se, em 2004, ao cristianismo. Num dos seus livros, concordando com Einstein, refere: “ … aquele que conhece a natureza, conhece Deus, mas não porque a natureza é Deus, mas porque o que a ciência procura com os seus estudos acaba por conduzir à religião.” Concluímos nós que, em última instância, a ciência procura a transcendência, o infinito, o desconhecido, o que está para além de toda a explicação; o fim último das coisas. E esta postura mantém acesa a procura do cientista, a sua demanda pelo sedutor mistério que encerra o Universo, mesmo que pelo caminho tenha de enfrentar escolhos. Não perde a “fé”, por isso. Mantém a esperança; sente-se intimamente seduzido por algo superior.

 

 A ciência, em parte, é também um ato de fé: afinal, “acredita” que é capaz de ir cada vez mais longe, buscando a derradeira explicação da realidade; algo que está, ainda, para além de uma explicação racional ou experimental. Claro que, apesar desta analogia, não podemos querer que a ciência substitua Deus. É elucidativo o que, numa das edições do jornal o “Público”, escreve Frei Bento Domingues: “ … seria grossa asneira supor que Deus é o substituto da investigação científica…”. Pelo que se depreende, não podemos estar à espera que Deus seja a solução para todos os problemas das nossas vidas e do mundo. Com efeito, acrescenta ainda Bento Domingues: “ A ideia de um mundo criado supõe um mundo limitado e falível. Não vale a pena discutir se Deus não podia criar um mundo perfeito. Seria uma absurda réplica de Deus, Deus repetido.”

 

Mas retomemos a postura do cientista. O seu projeto pode servir, curiosamente, de comparação com o caminho que deve seguir o projeto existencial do crente em Deus. Pelo menos, na atitude, no exemplo da sua abnegação em encontrar o “absoluto”. O humanismo existencialista de raiz cristã é a escolha de um sentido para a vida que aponta para a descoberta da fé. Sim, a fé não é propriamente um dado adquirido, sem necessidade de “alimento”. O projeto do cristão é também a demanda pela verdade, pela justiça, pelo bem, pela dignidade humana. E este projeto é, acima de tudo, uma vivência que se vai revelando na esperança de encontrar o nosso significado último. Portanto, a procura de Deus remete-nos para um propósito, para uma finalidade, para um fundamento, para a justificação do nosso existir, para o otimismo existencial. E Deus revela-se no que de bom fazemos. E esta é a visão do existencialismo cristão que encontramos, por exemplo, em Kierkegaard ou em Gabriel Marcel. E como se justificam, então, as nossas más ações ou o mal de que somos vítimas? A essa obstinada questão só podemos responder através do livre-arbítrio, pois Deus dotou-nos também de liberdade, da possibilidade de fazermos a nossas escolhas. Quando não agimos em conformidade com o bem, aí temos, talvez, o Deus oculto; se preferimos, a existência de um obstáculo que não pode servir de pretexto para baixarmos os braços. Como saberíamos valorizar o bem, se não tivéssemos a noção do mal?!

 

Abramos, aqui, um parêntesis para dizer, ainda, que o mal no mundo nas suas múltiplas expressões, como a fome, a guerra, a exploração dos mais fracos e dos mais frágeis, resulta do exercício da própria liberdade do homem. Que diríamos de Deus se, eventualmente, nos tivesse criado de tal forma que não tivéssemos qualquer possibilidade de tomarmos opções; de sermos livres? Muito provavelmente dir-se-ia que Deus não foi justo porque nos impediu de ser livres. Se, como tantas vezes gostamos de afirmar e defender, a liberdade é um bem precioso, porque haveria Deus de nos privar desse bem? Com efeito, quanto a mim, a questão deverá ser colocada nestes termos: por que razão o homem não põe ao seu serviço e do próximo a liberdade que tanto estima? Porque não exerce a liberdade para o seu bem e o da comunidade onde está inserido? Qual é a responsabilidade de Deus no mau exercício que o homem faz da liberdade que Dele recebeu? É como se, por analogia, perguntássemos: que responsabilidades têm os pais que amando os seus filhos, os educam para serem livres nas suas decisões, que os ensinaram a não roubar e a não matar e, entretanto, já adultos roubam ou matam?

 

Centrando-nos, uma vez mais, no conhecimento científico, há nele um processo da descoberta da verdade como se se escondesse sempre o mistério, o oculto; algo que parecendo ignorar o cientista, o atrai, o impulsiona, o apaixona, o seduz. Parece haver, assim, também, um lado “estético” no saber científico; como se houvesse uma qualquer beleza suprema, um bem superior que misteriosamente arrebata e inquieta o cientista.

 

Talvez a fé em Deus a tenhamos de viver, também, numa dimensão estética; como se a fé fosse uma vivência na paixão, no fascínio da procura de Deus, enquanto razão ou sentido último da nossa existência. Parafraseando Kierkegaard, a fé é a esperança no mistério; é a aceitação incondicional, do insondável, de Deus. Essa esperança, sobretudo quando é plenamente aceite, emerge como fundamento de confiança num projeto existencial que tem um verdadeiro significado; que justifica o otimismo com que deve ser encarada a nossa jornada. Contrariamente ao existencialismo humanista ateu, o existencialismo cristão, não vê na liberdade e na finitude as causas de ansiedade, mas antes fontes de esperança paciente num projeto existencial de libertação da morte e do sofrimento, ainda que nos assole a angustiante dúvida (humanamente legítima) que já Cristo teve na Cruz: “ Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”

 

Alguns dirão que, uma vez mais, é tudo uma questão apenas de “fé”. No entanto, Antony Fley não concorda quando, a propósito, diz: “ a minha descoberta do Divino foi uma peregrinação da razão e não da fé.” Ou seja: pela razão, mesmo admitindo as suas limitações, se chega a Deus; razão e fé podem, parece-nos, coexistir.

 

Escusado será dizer que, esta modestíssima reflexão, não tem a pretensão de esgotar a problemática de Deus, do ateísmo ou da ciência. Muito, muito longe disso. Mas uma coisa é certa: a razão, enquanto instrumento de conhecimento, é inexaurível. Queiramos nós exercitá-la. Uma das condições é a predisposição e/ou abertura à dúvida. Como muito bem diz Descartes, “ se se quiser buscar (…) a verdade, é preciso que pelo menos uma vez na vida se duvide, o máximo que se puder, de todas as coisas.”

 

Para continuar (Parte- V)

 

Jota Eme

A EQUAÇÃO EXISTENCIAL

Parte - III

 

Já vimos que o significado que damos à nossa existência depende, em grande parte, das nossas convicções religiosas, filosóficas ou científicas. Isso não pode ser pretexto para nos acomodarmos, como se tivéssemos alcançado a verdade definitiva; como se não houvesse motivo para nos interrogarmos sobre as razões das nossas escolhas, sobre a nossa existência e sobre aquilo que lhe dá sentido ou significado. A nossa existência requer o desafio da interrogação e reflexão constantes sobre o nosso trajeto, sob pena de resvalarmos para a sensação de vazio, de confusão e, muitas vezes, para o sentimento de impotência para enfrentarmos e superarmos as nossas dificuldades pessoais, familiares e profissionais.

 

O melhor, para enxergarmos o significado da nossa existência, é sermos capazes de o assumir criticamente; não nos deixarmos amestrar por pretensos “domadores de circo” (que não faltam!) ambicionando violentar a verdadeira nobreza dos seres humanos, a sua natureza pensante. Como muito bem dizia Kierkegaard, “ a multidão não é de fiar”! De facto, a profusão de memes pseudoculturais através dos meios de comunicação social e da Web (neste último caso, uma espécie de ciberdependência) cria-nos a ilusão de que a vida é pautada por prioridades viradas preferencialmente para o exterior: apelam, sobretudo, ao lado estético, à beleza exterior, à ditadura da juventude, à performance física e profissional; à lógica sedutora do mercado.

 

Gosto particularmente da expressão de Erich Fromm, citado por Carlo Strenger, e que expressa muito bem o que se promove nos dias de hoje: a “personalidade marketing”! Ora, o perigo mais eminente deste tipo de personalidade, é a possibilidade de nos reduzir à condição de autómatos. Parece, naquela perspetiva, que o significado da vida se resume a agradar, possuir bens materiais e ser o mais popular possível (um quase desejo narcísico da visibilidade!). Eis, basicamente, o sentido empobrecido da vida. E deste modo, sem quase nos darmos conta, capitulamos, inevitavelmente, nas malhas da economia, no quantificável, no superficial, numa estética exterior da vida; numa existência cuja lógica predominante é a do efémero. Todo o sentido existencial é condicionado e orientado pela voracidade económica que é bem evidente na priorização da renovação constante de estilo, na procura do novo modelo entre a multitude dos diversos gadgets e de outros bens de consumo. Tudo isto torna-se, muitas vezes, o fundamento da existência, contribuindo para fazer perigar aquilo a que Simone de Beuvoir chamou de “substância” do homem, ou seja, a sua liberdade.

 

Sabemos, através de alguma literatura nas áreas da psiquiatria e da psicologia, que as pessoas, hoje em dia, apesar do sucesso que logram nas suas carreiras profissionais e também na sua vida privada, sentem que o seu projeto existencial carece de significado; queixam-se do sentimento de vazio, de depressão, de ansiedade, de angústia; perdem, por vezes, a sua autoestima; não percebem, apesar do seu sucesso, os motivos de não se sentirem felizes. Nem os especialistas da “arqueologia da mente humana” conseguem dar-lhes respostas satisfatórias. Vemo-los, por isso, na busca desesperada de soluções que estão para além da dimensão economicista da vida na sua lógica marcadamente sedutora. Talvez porque reconheceram, finalmente, que se afastaram de si próprios; que perderam o seu bem mais precioso: a liberdade de pensar por si. E como afirmava Pitágoras, um filósofo da antiguidade grega, “ Não é livre o homem que não manda em si.” Já o homem que “manda em si” é aquele que ousa questionar, que se interroga sobre si e sobre aquilo que o rodeia; que procura contínua e sistematicamente a verdade, agindo em conformidade com ela; que valoriza a sua dimensão espiritual; que diz não à “personalidade marketing”. Carlo Strenger, que entre outras ocupações, se dedica à prática da psicoanálise existencial, refere, a propósito: “ Para muitos, o investimento no desenvolvimento intelectual marca uma grande diferença. As suas vidas tornaram-se mais equilibradas e a autoestima estabiliza quando começam a estudar filosofia, história da ciência ou história da religião.” Inferimos, sem surpresa para nós, que as pessoas se sentem melhor, menos vulneráveis, quando se preocupam, aprofundam e se interrogam sobre realidades fundamentais da sua existência; quando descortinam o que realmente é prioritário e/ou importante para as suas vidas; quando, como insistentemente temos referido, procuram o caminho da verdadeira sabedoria, a única que nos permite sermos nós próprios a esculpir o significado da nossa existência.

 

O exercício da liberdade requer em cada um de nós, a capacidade de colocar questões vitais na procura do significado da nossa existência. Quais? Podemos enumerar algumas: o que é a verdadeira sabedoria? O que é importante na minha vida? O que é para mim uma vida que valha a pena viver? O que é o bem? A minha vida tem-se pautado pela coerência entre o que digo e o que faço? Eu existo para quê? O que é que tem sustentado a minha existência? O que é a ética? O que são os valores? São imutáveis ou são relativos? Existe uma hierarquia de valores? Quais são os valores que eu privilegio? O que tenho feito para os preservar e para os difundir? Sou justo comigo e com os outros? O que devo esperar de mim e do outro? Qual o meu papel na comunidade onde me insiro? O que é para mim a justiça? O que é a verdade? Será que Deus existe? Sou um homem de fé ou prefiro fazer as minhas opções de acordo com critérios racionais? E o que é isso de razão e da fé? São distintas? Podem coexistir? Será que não passamos de seres finitos, ou espera-nos algo mais? E poderíamos, naturalmente, continuar. Alguns podem supor que são questões de fácil resposta ou, o que na minha modesta opinião é ainda pior, não têm qualquer importância; são coisas de filósofos, dirão, ainda, desdenhosamente, os orgulhosos “pragmáticos”. Para estes, como muito bem diz Carlo Strenger, “… uma procura intelectual pode ser uma opção muito pouco atrativa.” Diz ainda que há muitas pessoas, na tentativa de resolver os seus desequilíbrios emocionais e sentimentais que preferem “ procurar ajuda nos fármacos; sentem que não têm tempo, energia e, por vezes, dinheiro para investir mais no processo de autorreflexão.”

 

Perdendo a nossa capacidade de interrogar, desbaratamos a possibilidade de construir a verdadeira sabedoria e, consequentemente, diminuímos as possibilidades de construir sentido(s) para as nossas vidas; perdemos o que verdadeiramente nos carateriza enquanto seres humanos; tornamo-nos no que já dissemos anteriormente: autómatos! E as consequências, em vários domínios da vida e do mundo, são sobejamente conhecidas.

 

É através do exercício efetivo da liberdade que a nossa finitude pode ser saboreada, ganhar significado. Para tanto, impõe-se que reflitamos as nossas limitações e as nossas potencialidades; que consideremos a imperiosa necessidade de refletir as questões ligadas à nossa existência; que nos viremos para dentro de nós no verdadeiro sentido da famigerada máxima socrática: conhece te a ti mesmo.

 

Por estranho (ou aborrecido?) que possa parecer, vou priorizar, nas próximas reflexões, não só a morte como a questão da fé, a existência ou não de Deus, a ciência e a imortalidade. Vamos tentar perceber, nestes casos, por onde nos leva a razão, ou se preferirmos, o pensamento.

 

De um modo geral, receamos falar da morte. Porquê? Não faz parte indissociável da nossa vida? Pensá-la, pode, por exemplo, consciencializar-nos para a importância do valor da vida e para assumirmos um projeto existencial mais humano, mais solidário; para ganharmos maior consciência da nossa finitude e, desse modo, aprendermos a dar-lhe maior relevância, maior significado. Convoco, aqui, de novo, Carlo Strenger que, referindo-se ao conceito de “situação-limite” de K. Jaspers, refere que este pensador vê nesse tipo de situação, “…uma fonte de investigação filosófica e a consciência da liberdade (…) Ao serem lançados no malogro intrínseco à existência, como na finitude, na doença e na morte, os seres humanos também podem experimentar a liberdade (…) podemos escolher entre amar e odiar; entre enfrentar a realidade e evitá-la e entre a dignidade de enfrentar o sofrimento e evitá-lo.”

 

A tendência da nossa sociedade para negar a morte é tão evidente que, como alguém dizia, parece que vivemos numa “época pós-morte”. É como se quiséssemos escondê-la; como se não fizesse parte indissociável da nossa existência. Abandonou-se a prática da vigília aos mortos em casa. A própria igreja (a católica, por exemplo) criou uma espécie de “guetos” mortuários, e a cremação ganha cada vez mais adeptos. Já há casas especializadas em alternativas para as cinzas mortais: vende-se caixões biodegradáveis onde se plantam pequenas árvores; oferece-se, a preços exorbitantes, meios aéreos para lançar as cinzas em sítios recônditos como no mar ou nas montanhas dos himalaias. É como se, nestes casos, a fusão absoluta com a natureza acontecesse: uma espécie de “espiritualidade holística”. Dizem, alguns, que a Igreja católica não patrocina estas práticas por recear a tendência para valorizar a reencarnação. Ao mesmo tempo, os cemitérios deixariam, pouco a pouco, de se constituir como locais de culto dos mortos; tornar-mo-íamos mais amnésicos relativamente à nossa condição de seres mortais. Talvez, digo eu, o receio tenha algum fundamento.

 

Associado à morte está a negação ou afirmação de Deus, e a questão da imortalidade.

Na base das correntes filosóficas marcadamente ateístas há uma espécie de afirmação do triunfalismo da razão e do cientismo (o conhecimento científico é o único válido). Assim, não sendo possível provar, por esta via, a existência de Deus, este é simplesmente negado. Paralelamente, e comum mais ou menos aos vários tipos de ateísmo (“científico”, “conformista”, “sobranceiro”, “sofrido”…), subjaz uma conceção de natureza psicanalítica (Freud, por exemplo) que procura justificar a crença em Deus com base na frustração do homem: este terá tendência para atribuir caraterísticas a um Ser Superior (Deus) que ele próprio gostaria de ter e/ou partilhar (omnipotente, omnipresente, infinito…). Frustrado por reconhecer a impossibilidade de ter estas qualidades, tende a atribuí-las a um Ser Superior, esperando partilhá-las com Ele, quando morrer. E para as garantir aliena-se de si próprio, vivendo em função dessa esperança; uma esperança, segundo alguns, sem sentido, portanto. E todo o projeto de vida do homem é um projeto de alienação (Feuerbach, Marx), que o impele a existir virado “para cima”, em vez de se centrar em si próprio.

 

Como se sabe, para Marx, na sua visão política, a ideia do homem alienado pela religião serve os interesses da classe dominante, porque retira ao ser humano a capacidade de luta e de revolta; o homem “enreda-se” na religião por causa da miséria socioeconómica; se, depreende-se de Marx, as suas condições de vida forem melhoradas, se o sistema económico estiver ao serviço dos mais carenciados, dos que vivem na miséria, a religião desaparece. Pessoalmente, não concordo. Mas não vamos por aqui. Como ele também dizia, a religião é o “ópio do povo”, uma mera fantasia, digamos. Sem qualquer pretensão de refletir o marxismo, este preconizava, na esfera política, um paraíso na Terra (uma espécie de transcendência imanente!). Todavia, tal desiderato nunca veio a realizar-se, apesar de algumas experiências (políticas) nesse sentido (mal sucedidas, pelo menos para alguns).

 

Também há quem veja na religião uma espécie de doença esquizofrénica ou quase perturbação mental. Apenas com a diferença de que comparativamente ao doente esquizofrénico, o homem religioso ouve vozes que assume livremente como determinantes na sua conduta: no desespero e nos momentos de felicidade. Tudo é obra, portanto, de um Ser que exerce um poder incontornável na nossa existência. A par disso, o homem religioso ainda vê e acredita em milagres, outra ilusão. Este é um dos argumentos, por exemplo, de Richard Dawkins, um cientista ateu fundamentalista contemporâneo e autor de obras como “O Relojoeiro Cego”, “ A Desilusão de Deus”, entre outras.

 

Os não-crentes (sejam cientistas, filósofos…) veem Deus como um obstáculo à plena realização do ser humano; à construção de um projeto existencial com verdadeiro significado. O importante, por isso, é inverter a ideia de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Para que o homem se possa afirmar na precaridade da sua existência, impõe-se como princípio determinante, a consciência de que foi o homem que criou Deus à sua imagem e semelhança. Faz parte da sua própria criação, é um objeto cultural, como outro qualquer. E também não precisa Dele. Tem de assumir que está sozinho no mundo e que a sua existência é um projeto, cujo propósito não é agradar a Deus, mas, sobretudo, em primeiro lugar, agradar a si próprio.

 

Também já nos referimos ao facto de, especialmente na perspetival dos ateístas, a ciência, a arte, a filosofia, a literatura e toda a produção cultural ter apenas um único criador: o Homem. E através das suas criações (culturais) afirma igualmente a sua eternidade. No fundo, ele é o produtor e produto da cultura. As suas “produções” simbolizam a materialização da sua infinitude, do sentido ou do significado da sua vida, mas também da sua felicidade e do seu otimismo antropológico. A própria procriação tem, igualmente, como único propósito, assegurar a sobrevivência da espécie. Por isso, dizíamos, o não-crente tem a sua perspetiva de eternidade, a sua via de afirmar a dimensão humana de infinito. Em última instância, é este o único caminho para a negação da morte e da consequente confirmação da imortalidade, da “imortalidade simbólica”, assim preferem chamar-lhe. 

 

A tragédia da existência do homem, porque condenado a ser livre e finito (causa de ansiedade), torna-se, paradoxalmente, profícua, positiva, construtiva; mesmo ganhando relevo numa dimensão materialista, redunda, afinal, num simulacro de espiritualidade; numa dimensão que está para além da pura matéria, do homem corpóreo. 

 

Para continuar (Parte IV)

 

Jota Eme

 

 

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