Inúmeras vezes ouvimos dizer que é preciso dar maior autonomia às escolas. Em bom rigor, o que deveríamos ouvir é que, doravante, o Ministério da Educação e Ciência dará a possibilidade ou as condições para as escolas conquistarem a sua autonomia. Ou seja: a autonomia não é algo que se outorga como se se tratasse de uma propriedade que se transfere com direitos inalienáveis de autor.
Hoje, por tudo e por nada, fala-se muito de autonomia. Mas já paramos um pouco para refletir o seu verdadeiro significado?
Não se pretende, pois, focar ou discutir a autonomia das escolas, mas tão-somente refletir o significado de “autonomia”. Só a partir daqui, poder-se-á, para além de a compreender melhor, experimentá-la como tal, e perceber a sua importância em diversos contextos, designadamente em contexto escolar. Assim, educar para autonomia, como recorrentemente se ouve dizer, exige de nós, antes de mais, a compreensão, pelo menos razoável, do seu significado e alcance.
A autonomia dá-se? Não. Era o que mais faltava! A autonomia não é uma doação, mas antes uma procura, uma demanda e, portanto, um projeto dinâmico, quer do ponto de vista individual, quer numa perspetiva social e/ou comunitária. A autonomia é, assim, vivência. E ninguém pode viver por alguém. Portanto, isto quer dizer que a autonomia não pode ser outorgada ou imposta por decreto. Basta convocar aqui Paulo Freire, para percebermos ainda melhor o que pretendemos dizer: “ O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos conceder uns aos outros”, afirma o autor.
Outra questão: a autonomia é um caminho solitário? Naturalmente que não. A autonomia do indivíduo só se constrói numa relação de interdependência, ou seja, como muito bem refere Piaget, “ duas autonomias só podem alimentar entre si, relações de reciprocidade.” A autonomia é um projeto de individualização e, simultaneamente, um projeto de socialização. Tornar-se autónomo é, portanto, um processo de relação, de partilha e de cooperação com o outro; um processo que exige a intercomunicação, intercompreensão, interação. Apenas como pequena nota marginal, dir-se-ia que a autonomia não é propriamente um processo despersonalizado que decorre ou se constrói na base de meras interconexões digitais; precisa, para ser real, de interlocutores com olhar e com voz. O processo de socialização é parte indispensável do processo de personalização pelo qual nos tornamos autónomos. Como atitude de abertura e aceitação do outro, de respeito pelas suas diferenças e especificidade, ela requer também o reconhecimento da alteridade.
A autonomia é indissociável de valores? Claro que sim. Sendo em si mesma um valor, a autonomia requer e promove outros valores. Ser autónomo é ser solidário. A solidariedade é um valor indissociável da autonomia. Como atitude de emancipação e/ou de libertação individual (somos autores e atores da nossa ação), significa também uma atitude de disponibilidade, de respeito e de abertura perante os outros; exige, por isso, confiança interpessoal e, nessa perspetiva, tem como escopo a promoção da reciprocidade. Sem esta não há humanismo.
A autonomia significa inconformismo? Com certeza! Se, por um lado, o processo de autonomização individual requer a adaptação a uma mundividência que sempre nos condiciona, também requer a projeção de si próprio. E o que significa a “projeção de si próprio”? Simples: significa dizer não ao mero conformismo e ao suposto determinismo. Ou seja: o processo de autonomização implica a afirmação consciente e responsável de cada um de nós, na participação e construção de si e do mundo que o rodeia. J. Vassileff diz, a propósito: «tornar-se autónomo, consiste em responder à pergunta de Sartre: “ O que faço (projeção) do que fizeram de mim (determinismo) ”?» Inferimos, assim, que a nossa autonomia se joga numa relação de coabitação dinâmica entre a adaptação e a nossa projeção. Por outras palavras: o exercício efetivo da autonomia entra em choque com um projeto de vida de imitação, reclamando antes a criatividade e a invenção como formas de potenciar o processo de individualização e de personalização. E na sociedade atual sabemos como este processo está adormecido. Massacrados pela imperiosidade da produtividade, pela imprevisibilidade de tantas situações no nosso quotidiano, e por um processo que se quer, em vários contextos, especialmente profissional, hiperacelerado, não nos dão grande tempo para a criatividade.
A autonomia é um conceito absoluto? Não. Convém reafirmar que a autonomia não é um conceito absoluto, mas que ao fazer-se como processo implica a dependência de um contexto físico-social, histórico e cultural. Todavia, espera-se que o indivíduo autónomo faça dos condicionalismos a oportunidade de se projetar. Elucidativo, mais uma vez, Paulo Freire afirma: “ Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade.”
A autonomia implica arbitrariedade? Escusado será dizer que ser autónomo, não significa que impere a conduta arbitrária. Aliás, se recorreremos à origem etimológica da própria palavra, percebemos imediatamente que tal perspetiva está inequivocamente posta de parte. Vejamos: Autonomia “( autos = próprio; nomos = regra, lei) significa (…) a condição de uma pessoa, grupo ou coletividade maior que determinem, eles próprios, as regras a que se submetem.” (F. Rocha). Escolher e decidir é um projeto pessoal autónomo mas não absolutamente independente. Não se pretende tirar mérito às leis e regras, nem tão pouco prescindir delas. Pretende-se, isso sim, reafirmar a sua necessidade como condição da própria construção individual da autonomia responsável e moral. Importa é que, reconhecendo a sua necessidade, o indivíduo participe na construção das regras. A lei não é uma “revelação”, não é um “mandamento transcendente”, mas uma construção humana. E a autonomia só tem sentido enquanto processo individual de humanização.
Que outras atitudes caraterizam a autonomia? A autonomia não é uma atitude de resignação face ao mundo, mas uma atitude de “rebeldia” corporizada na indignação, na curiosidade, no inconformismo; numa atitude problematizadora. Sem querer abusar de P. Freire, não é fácil resistir a uma sua expressão - “radicalidade da esperança” - que, quanto a nós, pode muito bem traduzir o sentido da verdadeira autonomia. Voltando um pouco atrás, já deixamos claro que a autonomia não se faz sem autonomias; sem o reconhecimento do outro como ser autónomo. Só no reconhecimento do outro como ser autónomo eu legitimo a minha própria autonomia. Esta só é inteligível enquanto processo de individualização mas também como processo de socialização, de responsabilização e de cooperação.
A autonomia exige uma aprendizagem própria? Sem dúvida. E, por essa razão, a autonomia constitui um desafio para a sociedade, em geral, e para a escola, em particular.
Numa próxima oportunidade, procurar-se-á justificar a imperiosa necessidade da Escola se constituir como o contexto adequado para a conquista/aprendizagem de uma educação para a autonomia.
JOTA EME