Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Bricolage da Escrita

Bricolage da Escrita

A Financeirização da economia vs. Crise da democracia

 

Numa altura em que o governo português se prepara para apresentar o Orçamento, pode ler-se hoje, no jornal “ Público”, a notícia de que a única agência de rating ( Moody´s) que mantinha a dívida de Portugal no “lixo” teria, agora, decidido colocar o respetivo rating no que se designa de “nível de investimento”. Como se refere no jornal, «Portugal deixou de ter qualquer das três principais agências mundiais a classificar a sua dívida como “lixo”». Muito bem! Significa que, sub-repticiamente, se trata de um aviso ao governo português para que não aspire a grandes veleidades orçamentais, sob pena de regressar imediatamente ao “lixo”. O mesmo é dizer que as reivindicações socioeconómicas (mesmo as consideradas justas) não têm espaço para ser discutidas, devendo mesmo ser ignoradas. A bem do lucro, da saúde financeira dos grandes grupos económicos. Aliás, no mesmo jornal, Pacheco Pereira também diz: “ A discussão enganadora sobre o OE e as migalhas de decisão que o governo e a AR ainda têm retiram conteúdo à política em democracia, ou seja, tornam-na menos democrática.”

 

A notícia confirma apenas o que grassa pelo mundo: a democracia aburguesou-se de tal forma que redundou na financeirização da economia, na absolutização do lucro, nas decisões tomadas  pelos grandes centros financeiros. Desta forma, insiste-se, de forma obstinada, em manter a indiferença perante as grandes questões sociais: do desemprego, da exclusão dos mais desfavorecidos, do fosso cada vez mais gritante entre ricos e pobres, da falta de respeito pelas condições básicas de sobrevivência de povos em diversos pontos do mundo, do atropelamento de direitos humanos fundamentais, e da promiscuidade crescente entre a economia e a política, notória em vários países.

 

Vivemos tempos em que a democracia entrou numa espécie de crise de identidade. As suas raízes de pendor humanista e social apodreceram e está em risco de implosão. O facto de a democracia não responder aos grandes desafios sociais da atualidade, escancarou as portas para a entrada em cena de radicalismos pela voz de alguns aspirantes a ditadores (de direita e da esquerda), e para os consequentes populismos que inevitavelmente contribuem para situações ainda mais dramáticas, como está, aliás, a acontecer nalgumas partes do mundo.

 

Os chamados regimes democráticos ao enveredar por políticas que têm, continua e sistematicamente, desaguado numa espécie de globalização da indiferença social, vem proporcionando condições de revolta em vários pontos do globo e, consequentemente, a adesão massiva a alternativas pseudopolíticas que os indignados julgam ser a solução para as suas angústias e problemas.

 

A democracia, cuja origem etimológica significa “poder do povo”, consubstanciado em princípios de igualdade e de justiça, cede cada vez mais terreno não só ao poder financeiro, como a sistemas políticos que, através das suas “elites” cultural e politicamente tacanhas, fomentam e agudizam o ódio, agravando os conflitos sociais, e contribuindo para uma desestabilização mundial ainda maior. E o passado, mais ou menos recente, é elucidativo. Tivemos a última guerra mundial como exemplo paradigmático. Com a agravante de que, hoje, o mundo está mais perigoso do ponto de vista do seu poderio bélico, com um nível de sofisticação, como todos sabemos, sem precedentes.

 

Urge, pois, que a democracia faça jus ao seu significado etimológico; que não se esgote no ato formal do voto.

 

Jota Eme

A AUTONOMIA NÃO SE DÁ, CONQUISTA-SE!

Inúmeras vezes ouvimos dizer que é preciso dar maior autonomia às escolas. Em bom rigor, o que deveríamos ouvir é que, doravante, o Ministério da Educação e Ciência dará a possibilidade ou as condições para as escolas conquistarem a sua autonomia. Ou seja: a autonomia não é algo que se outorga como se se tratasse de uma propriedade que se transfere com direitos inalienáveis de autor.

 

Hoje, por tudo e por nada, fala-se muito de autonomia. Mas já paramos um pouco para refletir o seu verdadeiro significado?

 

Não se pretende, pois, focar ou discutir a autonomia das escolas, mas tão-somente refletir o significado de “autonomia”. Só a partir daqui, poder-se-á, para além de a compreender melhor, experimentá-la como tal, e perceber a sua importância em diversos contextos, designadamente em contexto escolar. Assim, educar para autonomia, como recorrentemente se ouve dizer, exige de nós, antes de mais, a compreensão, pelo menos razoável, do seu significado e alcance.

 

A autonomia dá-se? Não. Era o que mais faltava! A autonomia não é uma doação, mas antes uma procura, uma demanda e, portanto, um projeto dinâmico, quer do ponto de vista individual, quer numa perspetiva social e/ou comunitária. A autonomia é, assim, vivência. E ninguém pode viver por alguém. Portanto, isto quer dizer que a autonomia não pode ser outorgada ou imposta por decreto. Basta convocar aqui Paulo Freire, para percebermos ainda melhor o que pretendemos dizer: “ O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos conceder uns aos outros”, afirma o autor.

 

Outra questão: a autonomia é um caminho solitário? Naturalmente que não. A autonomia do indivíduo só se constrói numa relação de interdependência, ou seja, como muito bem refere Piaget, “ duas autonomias só podem alimentar entre si, relações de reciprocidade.” A autonomia é um projeto de individualização e, simultaneamente, um projeto de socialização. Tornar-se autónomo é, portanto, um processo de relação, de partilha e de cooperação com o outro; um processo que exige a intercomunicação, intercompreensão, interação. Apenas como pequena nota marginal, dir-se-ia que a autonomia não é propriamente um processo despersonalizado que decorre ou se constrói na base de meras interconexões digitais; precisa, para ser real, de interlocutores com olhar e com voz. O processo de socialização é parte indispensável do processo de personalização pelo qual nos tornamos autónomos. Como atitude de abertura e aceitação do outro, de respeito pelas suas diferenças e especificidade, ela requer também o reconhecimento da alteridade.

 

A autonomia é indissociável de valores? Claro que sim. Sendo em si mesma um valor, a autonomia requer e promove outros valores.  Ser autónomo é ser solidário. A solidariedade é um valor indissociável da autonomia. Como atitude de emancipação e/ou de libertação individual (somos autores e atores da nossa ação), significa também uma atitude de disponibilidade, de respeito e de abertura perante os outros; exige, por isso, confiança interpessoal e, nessa perspetiva, tem como escopo a promoção da reciprocidade. Sem esta não há  humanismo.

 

A autonomia significa inconformismo? Com certeza! Se, por um lado, o processo de autonomização individual requer a adaptação a uma mundividência que sempre nos condiciona, também requer a projeção de si próprio. E o que significa a “projeção de si próprio”? Simples: significa dizer não ao mero conformismo e ao suposto determinismo. Ou seja: o processo de autonomização implica a afirmação consciente e responsável de cada um de nós, na participação e construção de si e do mundo que o rodeia. J. Vassileff diz, a propósito: «tornar-se autónomo, consiste em responder à pergunta de Sartre: “ O que faço (projeção) do que fizeram de mim (determinismo) ”?» Inferimos, assim, que a nossa autonomia se joga numa relação de coabitação dinâmica entre a adaptação e a nossa projeção. Por outras palavras: o exercício efetivo da autonomia entra em choque com um projeto de vida de imitação, reclamando antes a criatividade e a invenção como formas de potenciar o processo de individualização e de personalização. E na sociedade atual sabemos como este processo está adormecido. Massacrados pela imperiosidade da produtividade, pela imprevisibilidade de tantas situações no nosso quotidiano, e por um processo que se quer, em vários contextos, especialmente profissional, hiperacelerado, não nos dão grande tempo para a criatividade.

 

A autonomia é um conceito absoluto? Não. Convém reafirmar que a autonomia não é um conceito absoluto, mas que ao fazer-se como processo implica a dependência de um contexto físico-social, histórico e cultural. Todavia, espera-se que o indivíduo autónomo faça dos condicionalismos a oportunidade de se projetar. Elucidativo, mais uma vez, Paulo Freire afirma: “ Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade.”

 

A autonomia implica arbitrariedade? Escusado será dizer que ser autónomo, não significa que impere a conduta arbitrária. Aliás, se recorreremos à origem etimológica da própria palavra, percebemos imediatamente que tal perspetiva está inequivocamente posta de parte. Vejamos: Autonomia “( autos = próprio; nomos = regra, lei) significa (…) a condição de uma pessoa, grupo ou coletividade maior que determinem, eles próprios, as regras a que se submetem.” (F. Rocha). Escolher e decidir é um projeto pessoal autónomo mas não absolutamente independente. Não se pretende tirar mérito às leis e regras, nem tão pouco prescindir delas. Pretende-se, isso sim, reafirmar a sua necessidade como condição da própria construção individual da autonomia responsável e moral. Importa é que, reconhecendo a sua necessidade, o indivíduo participe na construção das regras. A lei não é uma “revelação”, não é um “mandamento transcendente”, mas uma construção humana.  E a autonomia só tem sentido enquanto processo individual de humanização.

 

Que outras atitudes caraterizam a autonomia? A autonomia não é uma atitude de resignação face ao mundo, mas uma atitude de “rebeldia” corporizada na indignação, na curiosidade, no inconformismo; numa atitude problematizadora. Sem querer abusar de P. Freire, não é fácil resistir a uma sua expressão - “radicalidade da esperança” - que, quanto a nós, pode muito bem traduzir o sentido da verdadeira autonomia. Voltando um pouco atrás, já deixamos claro que a autonomia não se faz sem autonomias; sem o reconhecimento do outro como ser autónomo. Só no reconhecimento do outro como ser autónomo eu legitimo a minha própria autonomia. Esta só é inteligível enquanto processo de individualização mas também como processo de socialização, de responsabilização e de cooperação.

 

A autonomia exige uma aprendizagem própria? Sem dúvida. E, por essa razão, a autonomia constitui um desafio para a sociedade, em geral, e para a escola, em particular.

 

Numa próxima oportunidade, procurar-se-á justificar a imperiosa necessidade da Escola se constituir como o contexto adequado para a conquista/aprendizagem de uma educação para a autonomia.

 

JOTA EME

Mais sobre mim

imagem de perfil

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub