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Bricolage da Escrita

Bricolage da Escrita

A Arte ao Serviço do Capitalismo no Mundo Globalizado

Como mera introdução, façamos apenas algumas considerações sobre a globalização.

 

Abreviadamente, sempre se dirá, que tivemos laivos da globalização por altura do séc.xv, com os descobrimentos, desenvolvendo-se com a revolução industrial, alargando-se com a queda do muro de Berlim e, mais recentemente, atingindo a sua “maioridade”, com a explosão do neoliberalismo e da era digital. Admitamos que, no essencial, a sua história é esta.

 

De um modo geral - todos sabemos -  a globalização anda associada ao esbater de fronteiras entre vários países, especialmente nas dimensões económica, social, política e cultural. Espera-se, assim, uma interação entre as diferentes nações do mundo naquelas dimensões, coadjuvada pelo desenvolvimento imparável das tecnologias de comunicação e de informação.

 

A grande marca da globalização é a deificação da dimensão económico-financeira, muitas vezes alheada de preocupações ético-morais. Ou seja: a globalização económico-financeira não é uma garantia da globalização da justiça social.

 

Se olharmos para o exemplo paradigmático de alguns países das chamadas economias emergentes, ou em vias de desenvolvimento (India, Brasil, China, Rússia, entre outros…), facilmente inferimos que o seu crescimento económico não minimiza, pelo menos tanto quanto seria de esperar, a pobreza e a miséria sociais. Nalguns casos contribui, paradoxalmente, para uma degradação das condições de vida das pessoas: são mal pagas nos seus empregos e abusivamente escravizadas. As pessoas debandam das zonas rurais e remotas para afluir aos grandes centros urbanos à procura de melhores condições de vida, ficando desprotegidas, desorientadas e socialmente fragilizadas.

 

Ainda que as economias emergentes possam constituir uma oportunidade para a melhoria de uma determinada franja social, para grande parte da população, as condições de vida não sofrem - como é manifesto nesses países - alterações significativamente positivas. O que temos são exemplos de construção de cidades sumptuosas (Cazaquistão e China), de ilhas artificiais (Dubai…), de monumentos faraónicos de gosto duvidoso. Em contrapartida, as condições de vida da esmagadora maioria das populações destes e de outros países em estado de alegado crescimento económico, permanecem depauperadas. Recentemente, um relatório internacional designado “ Um pesadelo para os trabalhadores”, continha a seguinte informação sobre os trabalhadores chineses das multinacionais de brinquedos (Disney, Lego, Mattel…): “ … os trabalhadores recebem menos de um euro por hora, trabalham ilegalmente 175 horas extraordinárias por mês (…) ultrapassando em cinco vezes o limite legal de 36 horas, e indo contra a legislação laboral chinesa…”. Além disso, o relatório refere, ainda, a falta de condições condignas de habitação dos respetivos trabalhadores.

 

Caminhamos para a globalização da indiferença social consubstanciada num capitalismo que, através de uma estratégia capciosa, pretensamente artística, visa, acima de tudo, o hiperconsumo. E as economias emergentes não resistem à tendência do “capitalismo estético” da espetacularidade, da ostentação de símbolos “artísticos”.

 

Abramos um parêntesis para dar nota de uma notícia recente sobre a companhia aérea “Emirates”, a propósito de ter encomendado a uma artista paquistanesa a decoração exterior de um dos seus aviões com diamantes e cristais. Esta ostentação estética é incompreensível num mundo de injustiças sociais gritantes. Mesmo que seja uma mera imagem de promoção comercial da companhia aérea, não deixa de ser uma exibição sintomática de um país que se vangloria de ter uma riqueza descomunal. Em contrapartida, suspeita-se que os Emirados Árabes Unidos estão, conjuntamente com o Irão e a Arábia Saudita, envolvidos na guerra do Iémen onde está acontecer uma das maiores catástrofes da história da humanidade: estima-se que milhões de pessoas possam morrer de fome, em virtude de uma guerra por motivos meramente económicos, políticos e geoestratégicos. 

 

Mas vamos, então, procurar refletir um pouco sobre a relação entre a arte e o capitalismo no mundo globalizado.

 

“O Capitalismo Estético na Era da Globalização” é o título de um livro do filósofo francês G. Lipovetsky em coautoria com Jean Serroy, publicado pelas Edições 70, que nos dão uma visão interessante sobre aquele “fenómeno”. Em Portugal, o livro, teve a sua primeira edição em 2014. Ainda que tenham decorrido alguns anos desde a sua publicação, na verdade, mantém-se, no domínio em causa, atualíssimo. Sobretudo para quem gosta do tema, é um livro fascinante. Vale a pena ler, portanto. Só não foi um best seller, porque a promoção dos livros tem subjacente uma lógica da deificação do quantitativo e das modas, em detrimento da valoração da qualidade.

 

Ler e refletir um pouco sobre as ideias que percorrem este livro é um exercício de compreensão do mundo atual, e uma oportunidade para o desenvolvimento da cidadania global; ajuda-nos a refletir sobre o que pode fragilizar a dignidade do ser humano e, simultaneamente, o que a pode enobrecer.

 

Há, quanto a nós, um propósito transversal a todo o livro: mostrar como o capitalismo, nos nossos dias, tem como principal escopo, através da estética (ou pseudoestética?!), reduzir-nos à condição de meros consumidores. Toda a sua estratégia redunda numa lógica hedonista que privilegia o prazer imediato, o entretenimento, a espetacularidade, a afirmação da identidade pessoal e social pelo hiperconsumo, pelo culto do efémero, pela priorização de valores como  a fama e a riqueza. Todavia, e não diabolizando o capitalismo estético, os pensadores também admitem que, apesar da irreversibilidade do processo de hiperacelaração e da ética estética presentes no capitalismo artístico, vão coexistindo outras experiências que procuram, em contracorrente, uma vida mais serena nas suas múltiplas dimensões, bem como outros valores para além do mero consumismo.

 

Apesar de não haver a pretensão de fazer uma análise exaustiva ao livro em questão, tentar-se-á com ele, e a partir dele, refletir alguns aspetos que se nos afiguram relevantes na compreensão do mundo contemporâneo. Não deixaremos de recorrer aos autores deste interessante livro, sempre que se considerar pertinente.

 

A arte, hoje, no chamado capitalismo estético, confunde-se com os próprios bens e objetos consumíveis. É como se, doravante, estivesse ao serviço de uma conceção de vida pautada pelo hiperconsumo. Com o capitalismo estético, a arte banalizou-se, massificou-se, democratizou-se; transformou-se, em grande parte, numa aliada do supérfluo, do inútil. A arte foi seduzida pelos circuitos produtivos e de consumo, o que contribui, até certo ponto, para delapidar uma das suas caraterísticas estruturantes: a perenidade, a imortalidade simbólica do artista.

 

Ao longo da história da humanidade, a arte desempenhou várias funções: pedagógica, social, política, cultural. Inclusivamente, nalguns contextos históricos, adquirir arte era uma condição de prestígio e de ascensão social; constituía, desse modo, o símbolo distintivo de uma elite economicamente abastada, mesmo que não fosse, por vezes, culturalmente evoluída. No nosso país, por exemplo, na época dos descobrimentos, surgiu uma classe de novos-ricos que não prescindiam da arte para se afirmarem também na vertente cultural. 

 

Pautando-se por uma lógica de sedução, o capitalismo atual recorre à estratégia da estilização de tudo o que pode ser objeto de consumo. Nada escape à estetização, ou ao que os autores designam de “artialização”. Até em determinados setores tradicionalmente mais conservadores, como os próprios pensadores lembram, há espaço para a estética na sua forma de entretenimento como é o caso, por exemplo, dos museus. Nesse sentido, os autores do livro mencionado, dizem: «São os próprios edifícios que são objeto de curiosidade, mais do que as coleções que albergam e das quais muitas vezes não se sabe nada.» Portanto, o que se torna evidente é, inferimos nós, a necessidade de criação de uma imagem de marca, singular, original, distintiva. O importante é mercantilizar os espaços, priorizar o consumo, revitalizar a indústria turística.

 

A lógica da irracionalidade do capitalismo contemporâneo, pela via da “arte”, estimula o prazer imediato das sensações e emoções, deifica o consumo como sendo a razão única da nossa existência. Como se a máxima fosse apenas uma: “ eu consumo, logo existo”! Desvanecendo-se do nosso horizonte qualquer referência sólida de orientação existencial, o capitalismo artístico pretende convencer-nos de que a afirmação da nossa identidade, bem como as nossas referências se constroem pela via do exibicionismo consumista. 

 

À semelhança de qualquer religião, o capitalismo artístico necessita de um conjunto de dogmas, de valores, de uma ideologia, que catapultem os consumidores para a crença na divinização do hedonismo, com especial expressão na vontade da satisfação permanente dos prazeres imediatos, na satisfação dos infindáveis desejos, na conquista da felicidade de pendor materialista. O capitalismo estético assenta na lógica da espetacularidade, na performance de estilo, mas também na obsolescência dos produtos que oferece, como estratégia de aceleração do consumo. Os gadgets, nomeadamente o telemóvel, são objeto de constantes alterações estilísticas e de funcionalidade, fazendo parecer da idade jurássica o modelo anterior! E, assim, estimulados e motivados por uma lógica feérica do consumo, sucumbimos nas malhas de uma existência estupidificante, de inautenticidade. Elucidativas são, a propósito, as palavras de G. Lipovetsky e Jean Serroy: «A cultura clássica tinha a ambição de formar, educar, elevar o homem: agora pedimos à cultura exatamente o contrário, que nos esvazie a cabeça.»

 

Deduz-se, ainda, da leitura do livro dos autores já referidos, que o capitalismo estético usa a arte como instrumento determinante na estilização dos bens, eventos e locais (Gadgets, automóveis, móveis, resorts, centros comerciais, cinema, museus, ginásios, parques de diversões, moda, espaços públicos e edifícios das cidades…) para os tornar emocionalmente irresistíveis e, consequentemente, facilmente consumíveis. Ao estilizar o universo que nos rodeia, o capitalismo artístico massificou a arte. Esta, que nalguns casos é uma manifestação Kitsch (que dizer, por exemplo, dos ténis multicolores fluorescentes? perguntam G. Lipovetsky e Jean Serroy) confunde-se com os próprios bens e locais que promove; passou também ela a ser massiva e democraticamente acessível.

 

A abordagem do capitalismo artístico comprometido com a resolução dos problemas ecológicos e/ou ambientais, também merece atenção em O Capitalismo Estético na Era da Globalização. Em que sentido? Na medida em que o capitalismo artístico nos propõe soluções que supostamente contribuem para o que é famigeradamente conhecido como “desenvolvimento sustentável” Na feliz expressão dos autores estamos “ no tempo do biodesign”. A estratégia é sempre a mesma, ou seja, a responsabilidade ética do capitalismo artístico é indissociável da dimensão estética (cuja principal manifestação é, como sabemos, o hedonismo, o ludismo, a espetacularidade da imagem, a busca incessante do prazer das emoções e das experiências). A este propósito, dizem-nos os escritores: «É assim que vemos aparecer (…) novas orientações mistas (…) o consumo responsável, o luxo sustentável, o turismo verde. Estamos no momento da hibridação da estética e da ética, da arte e da ecologia.» Mas pergunta-se: não estaremos apenas no reino do artificialismo, embrulhado, uma vez mais, na arte?! Sim. Na linha, aliás, como também vão referindo os autores, de uma ética estética.

 

O certo é que, independentemente das boas intenções no desenvolvimento sustentável, não se vislumbram convicções autênticas a nível internacional para, através de uma estratégia global, salvar o planeta dos ataques que lhe são sistematicamente desferidos. As cimeiras internacionais sobre o aquecimento global redundam no fracasso, porque ninguém quer prescindir dos seus interesses económicos, das suas indústrias poluentes e lucrativas e, ainda, porque a sensibilidade para os problemas ambientais é considerada por muitos como uma ideia meramente romântica, de duvidosa sustentação científica. Neste e noutros assuntos sem fronteiras, apetece-nos dizer que temos uma globalização dos problemas, mas há muita resistência na construção de uma globalização de soluções.  

 

Noutros contextos espaciais, assistimos à recuperação de edifícios históricos, à deslocalização dos centros urbanos (centralidades periféricas, expressão usada pelos nossos autores) com a criação de novos atrativos gastronómicos e de entretenimento como restaurantes, bares e discotecas. Tudo em prol de uma “ambiência de prazer”, de um “consumo turístico de eventos distrativos.” Sobre este assunto, dizem-nos também os pensadores já citados, que assistimos «… ao design dos espaços públicos e do mobiliário urbano, ao fachadismo arquitetónico (…), à revalorização do património, à construção de edifícios espantosos desenhados por arquitetos-estrelas.» Parece-nos, no entanto, que hoje, nas cidades, o “centro” dilui-se por vários “centros”, por culpa do capitalismo estético que tudo relativiza em nome do hedonismo. Efetivamente vai definhando o "centro" das cidades, associado a lugar único, delimitado, de encontro, de interceção de várias atividades, dando lugar a espaços concebidos como centros de interesse eminentemente lúdicos e mercantilizados. É como se na organização espacial das cidades se preferisse o caos - a bem do consumo - elevado à categoria de estilo propositada e sedutoramente négligé!

 

A temática da sexualidade também não é imune ao capitalismo artístico. A publicidade nos meios de comunicação, designadamente na televisão, respira erotismo em “grande estilo”; um filão do qual qualquer marca conceituada não prescinde para promover os seus produtos. Ao mesmo tempo proliferam as sexhop físicas e online com uma multitude de produtos estilizados para facilitar, acelerar e intensificar o prazer; sem limites, sem tabus. Tudo está, afinal, na linha do que preconiza o capitalismo estético: o prazer imediato empacotado na estética. A sexologia, por sua vez, brinda-nos, com frequência, com dissertações sobre o ponto “G” feminino (uma forma de abreviar o nome do seu inventor); como se procurasse obstinadamente o bosão de Higgs, a partícula elementar que estará por detrás do prazer desejável e previsivelmente explosivo. De forma surpreendente, apesar da investigação sobre aquele “ponto”, ainda não se avançou para uma outra qualquer letra da ordem alfabética! Se a opção da linha de pesquisa for essa, esperamos que em nome de tão nobre investigação, não tenhamos de acrescentar mais algumas letras ao abecedário!

 

O narcisismo, outra caraterística da era atual, é nutrido pelo capitalismo artístico. Diviniza-se a imagem; procura-se a encenação de si próprio, especialmente nas redes sociais; constrói-se a nossa identidade, de “tipo estético”.  Exatamente como as marcas de vários setores aceleram inovações, estando constantemente a passar atestados de caducidade e de inoperância a modelos anteriores, também nós provocamos a obsolescência da nossa imagem! Queremo-la sempre renovada! Pela sua assertividade, não se pode deixar de, neste contexto, recorrer aos autores: «os indivíduos fabricam e difundem em massa imagens, pensam em função da imagem, exprimem-se e têm um olhar reflexivo sobre as imagens, agem e mostram-se em função da imagem que eles querem ver projetada de si mesmo.» Eleva-se assim ao paroxismo a experiência do prazer na sua dimensão estética. Todos querem, obcecadamente, ter o seu tempo de show ou, então, a oportunidade para se ser uma celebridade, uma vedeta. Noutro contexto mais mediático, os reality show televisivos são um exemplo paradigmático dessa “perturbação emocional” (Em França, os 12 solteiros para o primeiro Big Brother saíram de um casting com 38.000 candidatos, dizem-nos os autores). Todos querem entrar no star system!

 

O capitalismo artístico perpassa toda a realidade quotidiana; tem, como dizem G. Lipovetsky e Jean Serroy, uma dimensão transestética. Mas a massificação da arte, enquanto mera estratégia de consumo do capitalismo artístico, pode beliscar a sua respeitabilidade, parece-nos. Com efeito, a arte é a expressão da liberdade, da criatividade independente e profundamente espiritual do artista. Não pode estar confinada e subjugada à teatralidade e espetacularidade do capitalismo estético - instrumentos e/ou estratégias de consumo - sob pena de ver exaurida a sua essência, e de ser corresponsável na redução da vida ao bem-estar material. Claro que, especialmente nalgumas circunstâncias, o capitalismo estético pode dar o seu contributo para melhorar a qualidade de vida das pessoas, mesmo quando a sua intenção primeira é o consumo, o lucro. Por outro lado, sabemos reconhecer, sublinhe-se, que a arte - nas suas diversas manifestações - também existe fora da promiscuidade com os bens e objetos que consumimos. Seria demasiado redutor, pensar-se que ela está apenas ao serviço do consumo.

 

Os autores a que nos reportámos por mais de uma ocasião perspetivam o capitalismo estético como uma conceção de vida assente na indissociabilidade entre a ética (ou pseudoética?) e a economia esteticizadas. Tudo é artializado para que a preocupação existencial esteja focada na satisfação sensorial e experiencial do consumo desenfreado. Todavia - referem também - o ideal de vida não pode estar confinado ao consumo, sob pena de homem ficar amputado da sua capacidade para encontrar outras vias, outros sentidos de aperfeiçoamento e de enriquecimento de si.

 

Quanto a nós, e em jeito de (in)conclusão, o capitalismo artístico cria apenas a ilusão de uma felicidade plena, gerando, ao mesmo tempo, a carência vitamínica do sentido existencial. As doenças do foro psíquico que caraterizam a nossa época são, não raras vezes, atribuídas ao sentimento de vazio existencial. O eu-mercadoria degenera frequentemente numa necessidade desesperante de ancoragem em algo duradoiro; na imprescindibilidade da estabilidade existencial; na imperiosidade de uma existência que lhe assevere significado; na demanda de uma hierarquia de valores que relegue para a sua base o hedonismo consumista.  Ou seja: o capitalismo estético se, por um lado, nos proporciona o prazer, a euforia do momento, não deixa de, paradoxalmente, nos criar angústia, insatisfação, um sentimento de incompletude, uma necessidade de ultrapassar a fragilidade e/ou vulgaridade da felicidade sedutora. 

 

Na nossa perspetiva, não é só o consumismo desenfreado que o capitalismo estético estimula, que é tido como responsável pela instabilidade psíquica do homem num mundo globalizado. Poderíamos acrescentar, ainda, a tendência para a pressão laboral que tem levado, no limite, à autoexploração no trabalho (servidão voluntária, nas palavras de George Orwel); a cultura digital aditiva que nos afasta cada vez mais uns dos outros e atrofia o nosso pensamento; a crise dos fundamentos da democracia consubstanciada na incapacidade em dirimir os problemas sociais e ecológicos; a fragilidade de valores de pendor humanista e a crescente insegurança; a vigilância e o controlo sob várias formas a que, sem o nosso consentimento, somos sistematicamente submetidos; a falta de ideologias políticas geradoras de soluções sustentadas para impedir os avanços dos totalitarismos e dos fundamentalismos; a inexistência de uma cidadania ativa, materializada no exercício de responsabilidades ao nível de compromissos éticos, sociais e políticos.

 

Queremos reafirmar que no meio do turbilhão existencial, há também uma demanda por uma cultura que privilegia a pausa e a qualidade de vida nas suas múltiplas dimensões (cívica, familiar, espiritual, social, cultural…). Talvez, seguindo a perspetiva de Lipovetsky e de Jean Serroy, tenhamos de conviver com dois tipos de cultura, a saber: low life e fast life! Muito provavelmente estarão condenadas a coexistir. Permita-se-nos o exagero da analogia, mas é como a coexistência, na gastronomia, do requinte qualitativo do low food e o meramente funcional do fast food. Talvez, em tudo, tenhamos de saber viver com os paradoxos do nosso quotidiano. Talvez, sublinhamos.

 

Por fim,  ainda se nos afigura importante dizer,  que não podemos perder o otimismo existencial. Para tanto, temos de acreditar que «a espécie humana tem um poder de regeneração bastante surpreendente» (Carlo Strenger). Esperemos, também, que a regeneração seja um desafio permanente. Afirmar-se-ia mais: é necessário que a regeneração da humanidade se concretize na capacidade de uma aprendizagem da harmonia dos paradoxos ou, parafraseando Heraclito, filósofo da antiguidade grega, que saibamos viver no equilíbrio dos contrários! Porque a felicidade e infelicidade, a dor e o prazer - admitamo-lo -  são indissociáveis ou constitutivas da condição humana. Pascal  Brucker, no seu livro, A Euforia Perpétua , cita  um doente que terá dito ao seu psicanalista:  Ajude-me a suprimir a dor que me faz sofrer mas deixe-a comigo para que eu possa existir. 

 

Jota Eme

Sobre a mudança na escola: quando, como e para quê

Estou cansado de tanta mudança. Quero é trabalhar! É um desabafo que, com frequência, se ouve dos docentes.

 

Em resultado de conversas com os principais agentes do processo de educação e ensino, lendo e ouvindo notícias sobre a matéria, inferimos facilmente que a escola pública parece ser cada vez mais um espaço de descontentamento para professores e alunos, em vez de se constituir com um local aprazível de trabalho. Não é raro ouvir dizer de um número cada vez mais significativo de professores que as mudanças não param, e que, por esse motivo, não conseguem um grau de concentração suficiente para poder trabalhar tranquilamente. Ou seja: a mudança anda, frequentemente, associada a pressão, a inutilidade; causadora de stress emocional e profissional.

 

Assim, e de um modo geral, o ónus daquela “infelicidade” recai, normalmente, na proliferação de legislação que, grosso modo, implica a exigência de permanentes mudanças pedagógico-organizacionais, a maior parte das vezes consideradas desnecessárias, ou de difícil compreensão quanto ao seu significado e alcance. Acresce o excesso de trabalho burocrático, a irresponsabilidade de alguns pais e encarregados de educação, os comportamentos disruptivos dos alunos, a extensão dos programas e a falta de valorização social e política dos docentes, entre outros. Se admitirmos que esta realidade se tem perpetuado no tempo, então a mudança é quase sempre recebida com muito ceticismo.

 

Com efeito, todos os argumentos atrás invocados têm algum fundamento. Eles representam, efetivamente, constrangimentos que condicionam significativamente o desempenho profissional docente que se quer orientado para o seu principal objetivo: instruir e formar os alunos. E quando, por outro lado, a tendência é exigir aos docentes um certo “multifuncionalismo”, então há o risco de se perder o foco naquilo que é consensualmente admitido como sendo o essencial - a qualidade do ensino e das aprendizagens das crianças e alunos.

 

Optemos, no entanto, por colocar o enfoque no fator “mudança”, por nos parecer, nos últimos tempos, uma das causas de maior perturbação no exercício profissional docente.

 

Nesta questão em concreto sobre a mudança, o que se afigura importante é que não radicalizemos atitudes. A mudança, hoje, tornou-se uma necessidade transversal a todos os setores socioprofissionais; é, no mundo atual, numa sociedade hiperacelerada, incontornável.

 

Hoje, também é comum ouvir dizer que as pessoas, designadamente na escola, têm tendência para uma grande resistência à mudança. Coloca-se, por isso, a seguinte questão: essa resistência é natural? De algum modo, sim. É uma atitude compreensível e aceitável. E porquê? Provavelmente porque mudar implica, muitas vezes, pôr em causa as nossas certezas, os nossos pontos de referência, as nossas convicções, a nossa maneira de pensar e de agir. Todavia, a resistência à mudança, se não forem acauteladas determinadas condições ou princípios, pode ser ainda maior.

 

Independentemente de quem conduz, num determinado tempo, as políticas educativas do nosso país, convém ter presente que, quando a propagada necessidade de mudança surge como estratégia de mera exibição do poder político, provoca naturalmente revolta; quando a mudança não tem propriamente um rumo claro, o resultado é a confusão; quando a mudança não é acompanhada pelo respeito e confiança nos seus principais promotores, degenera na indiferença e na falta de motivação; quando a mudança não evidencia uma intenção objetiva de suprir necessidades prementes e estruturantes, redunda numa atitude de desconfiança; quando a mudança se apresenta como mera cosmética, incita ao sarcasmo.

 

Chegados aqui, é caso para mais uma pergunta: em que sentido, a mudança pode constituir para a escola pública uma oportunidade de melhoria, razoavelmente consensual e, deste modo, gerar menor resistência por parte de quem trabalha nas escolas?

 

Pode-se tentar responder à questão, evitando a via simplista, mas não tendo também, aqui, a pretensão de apresentar uma explicação exaustiva. Até porque os motivos da menor ou da maior resistência à mudança são complexos, e estão interligados nas suas várias dimensões: cultural, política, socioprofissional, psicológica, etc.

 

Vamos lá, então.

 

O que é preciso fazer-se para que a mudança se constitua como oportunidade de melhoria?

 

Em primeiro lugar, deve-se esclarecer e/ou fundamentar previa e convenientemente, os pressupostos e principais objetivos que justificam a necessidade da mudança. Também se espera que exista um um tempo adequado para a sensibilização e preparação de todos os que vão estar diretamente envolvidos nas mudanças a realizar.

 

Antes de implementar a mudança, é fundamental saber se é expectável que a mesma venha a contribuir para dar respostas aos problemas e/ou necessidades estruturantes particularmente sentidas pelos destinatários, e se existem recursos humanos preparados e materiais adequados para a concretizar.

 

Importa, também, perceber se há uma adesão generalizada por parte dos principais interessados aos objetivos que a mudança pretende atingir, e se, na opinião dos mesmos, são efetivamente exequíveis, pertinentes e úteis.

 

Para o êxito de qualquer mudança é imperioso que os principais interessados estejam nela implicados efetiva e ativamente, num claro respeito pelo exercício da autonomia responsável. A aceitação e participação na mudança obrigam que a mesma não seja percecionada pelos seus atores, como uma imposição. Concretamente na educação, qualquer mudança deve ser trabalhada por todos, numa clara convergência de objetivos.

 

Afigura-se, ainda, relevante, ter presente que a mudança não pode ser vivida num “regime de urgência”, numa busca obsessiva de resultados imediatos; como se a quiséssemos equiparar a um mero zapping. A mudança qualitativa, nomeadamente de natureza pedagógica, exige alguma desaceleração.

 

Na sequência do que se expôs no ponto anterior, deve-se garantir o tempo indispensável para a reflexão sobre as mudanças estruturantes que se pretende implementar. São necessários momentos para que os principais autores e atores das mudanças procedam à sua análise crítica, monitorização e avaliação. A escola deve ser assumida como locus de discussão e reflexão em torno dos seus próprios problemas e das possíveis soluções por si encontradas para os ultrapassar ou minimizar. É por essa via que se poderá motivar, dignificar, estimular e responsabilizar os principais atores para a mudança.

 

Finalmente, não se pode aspirar a uma ampla adesão à mudança, quando está ancorada numa lógica que não implica os seus principais agentes no plano das decisões, e se exclui ou secundariza as suas legítimas expetativas e condições socioprofissionais.

 

Infere-se, pois, que a mudança, para ter êxito, exige o respeito por aqueles pressupostos. Só assim se pode garantir que todos (professores, alunos…) possam trabalhar com alguma tranquilidade e motivação.

 

Tendo presentes os princípios a que se aludiu anteriormente sobre a mudança, talvez possamos assumi-la e aceitá-la com menor resistência e, consequentemente, como um contributo indispensável para a melhoria da educação e do ensino. Como alguém muito bem dizia, a vida no que tem de melhor é um processo que flui... Ou seja: a vida significa abertura à mudança, desde que esta seja vivenciada como processo crítico, livre, responsável, participativo e criativo. E a educação e o ensino não são exceção!

 

Jota Eme

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