QUALQUER SEMELHANÇA COM A VIDA REAL É PURA COINCIDÊNCIA
Na era da cultura digital, deixamo-nos escravizar cada vez mais por tendências que nos afastam de nós próprios, dos outros e do mundo. Podíamos, com alguma facilidade, efabular algumas situações que muito provavelmente são disso exemplo. Tentemos fazer, então, esse exercício.
A família Santos é constituída pelo pai, mãe e dois filhos em idade escolar. O mais novo, o Pedro, tem 11 anos, e a mais velha, a Joana, tem 15. O pai, o Senhor Santos, é funcionário público, e a mãe, de seu nome, Teresa, trabalha como advogada para uma multinacional.
O Senhor Santos, o pai, chega normalmente a casa por volta das 18 horas, enquanto a mãe não tem horário certo: nem de chegada, nem de saída. Em casa desta família, cada um tem o seu computador portátil e telemóvel de última geração. Além disso, todos os quartos têm TV. Esta “caixa” também tem lugar na cozinha, na sala de jantar e na cave. Já discutiram lá em casa, a possibilidade de instalar o aparelho na casa de banho para a eventualidade de o telemóvel ficar sem bateria ou falhar a internet.
20.00h. - Está na hora de jantar – avisa o pai os filhos, num tom pachorrento e pouco audível, enquanto olha atentamente o face, onde o seu amigo lá do trabalho postou uma infinidade de fotografias das férias que está a passar no Dubai. Os “gostos” surgem em catadupa e o Senhor Santos, “pimba”, coloca também o seu Iike com aquele emoji de espanto! “E porque não, já agora, comentar”? – interrogou-se, entusiasmado, o Senhor Santos. E comenta. E em jeito de desafio, vai postando fotografias de quando, também ele, há dois anos, esteve num resort em Punta Cana! Entretanto, espia os comentários dos amigos, apondo o respetivo “gosto”. Lembrou-se também de dar uma espreitadela numa página que fala de segredos da saúde. Estava a ler um dos sete, quando o filho mais novo, o Pedro, reclama a presença do pai na mesa de jantar, onde já se encontrava com o seu telemóvel a explorar jogos de guerra.
- Pai! Há meia hora que estou à espera! - berrava ele desalmadamente com os auscultadores nos ouvidos.
- O que vamos jantar? – perguntava ao pai, meio desesperado, o Pedro.
– Sei lá - respondeu despreocupado o pai. - Vai comendo alguma coisa com a tua irmã – acrescentou ainda. - Onde está ela? – Lembrou-se, por fim, de perguntar.
- Não sei, julgo que está lá em cima, no quarto, a postar umas fotos no Instragram. Já vi algumas. É o que ela faz mais ultimamente.
– Joana! vem jantar - diz-lhe, por telemóvel, o irmão. Mas não obteve resposta. Por isso, continuou concentradíssimo nos últimos êxitos de música hip hop, enquanto visionava algumas cenas de um youtuber, “profissão” que sonhava seguir. “Bué de fixe”, costumava, a propósito, dizer. O pai, sem se aperceber, continua o seu “visionamento bulímico” dos feeds no facebook, concentrando-se numa acesa e agressiva discussão, a propósito de uma notícia relacionada com a igualdade de género.
21.00h. Esbaforida, eis que chega a mãe. Teve de suportar o trânsito caótico e, como habitualmente, trabalhou mais umas horas num caso de especial complexidade. Ainda está a descalçar o primeiro sapato, quando alguém do escritório lhe telefona a propósito de uns assuntos pendentes. Coxeando pela sala, ouvia do seu chefe, a indicação para que nessa noite, ultimasse alguns pormenores do processo que tinha em mãos. Anuiu imediatamente, como se o pedido já fizesse parte das suas rotinas laborais. Afinal, o que conta é a performance profissional.
A filha dá vagamente pela chegada da mãe. Está concentrada no instagram, postando algumas fotografias, ao mesmo tempo que perscruta atentamente o número de “likes”, especialmente de uma delas, expondo-a numa praia, ao pôr-do-sol. Foi isso que a impediu de estabelecer qualquer contacto sonoro ou visual com a sua progenitora. A mãe, não tendo tempo de se instalar comodamente, não resiste a olhar as últimas notícias e, ainda, com as calças desapertadas e um dos sapatos calçado, vai colocando “likes” nalgumas cenas do quotidiano das suas amigas. Simultaneamente, partilha um ou outro vídeo de sensibilização para a solidariedade social, uma frase pretensamente excecional sobre a importância da família e, outra, sobre a verdadeira amizade. Lembrou-se, de repente, que tinha descurado o aniversário de uma colega de trabalho com quem se encontra todos os dias. Mas agora, munida do seu aparelho topo de gama, desculpa-se pelo atraso, e escreve-lhe para lhe dar os parabéns, sem dispensar os emojis, simbolizando estes corações e balões que, a julgar pela aparência dos seus movimentos, parecem empurrados pelo vento. Como o dia esteve excecionalmente quente, não deixa de partilhar a fotografia do medidor de temperatura digital do seu automóvel que, na altura, registava 39.º! No exterior, claro. Podia-se ver também a estação de rádio que sintonizava.
-Mãe, já chegaste?! – perguntava a sua filha, ainda absorta no ecrã do seu telemóvel. Já tinha decorrido muito tempo, desde que a mãe entrou em casa.
– Sim – respondeu de forma lacónica, enquanto lia o número 2, dos 10 conselhos para evitar as rugas no rosto, tentando simultaneamente desenvencilhar-se do sapato que ainda mantinha calçado, e fitando a cama para onde ansiava atirar-se. E, literalmente, lançou-se mesmo. Nessa noite não dormiu nua, uma prática que tinha adotado há algum tempo, quando leu no espaço digital que estava comprovado (cientificamente!) que esse hábito prolonga a vida em, pelo menos, dez anos!
No fim de semana, a família decidiu sair para jantar fora. Consultaram, via google, o melhor restaurante da cidade. Depois de analisar as propostas de cada um, consensualizaram, finalmente, aquele que podia responder às diferentes exigências gastronómicas.
A saída de casa não foi fácil: todos, sem exceção, demoraram algum tempo para encerrar o espaço digital.
Já na mesa do restaurante, o empregado depositava 4 exemplares da ementa. Tinham decorrido entre cinco a sete minutos, quando, como é natural, regressa o empregado para registar os pedidos. Para seu espanto, nenhum dos elementos Santos tinha feito a sua opção. Ainda andavam pelo espaço digital.
- Desculpe - disse a Teresa para o empregado, procurando justificar aquela distração. Sem concluir a leitura que a tinha ocupado até aí no Twiter, interpelou os seus filhos e marido:
- Vamos lá escolher! - disse ela determinada e com voz bem-sonante!
- Escolhe tu, mãe – respondeu sem levantar os olhos do ecrã, a Joana.
- Eu quero um hambúrguer – disse Pedro, um tanto absorto no jogo que o entretinha no seu ecrã.
- Pensas que estás no mcdonalds? – Interrogou-o a mãe, um pouco irritada.
- Pode ser um bife com batata frita – respondeu o Pedro, querendo despachar a conversa.
- Por mim, o que tu escolheres está bem – disse, por fim, o marido enquanto lia os comentários sobre a pesada derrota que o seu clube de futebol tinha sofrido na noite anterior.
- Por favor, já escolheram? – perguntava, aparentemente paciente o empregado, depois de mais dez minutos concedidos à família.
- Sim. - Respondeu Teresa, um pouco envergonhada. O empregado registou os pedidos. Faltavam as bebidas. Tinham dispensado as “entradas”.
- E para beber?
- Água, por favor – respondeu ao empregado a Teresa, porta-voz do grupo, sem sequer se preocupar em consultar os restantes que continuavam a dar preferência ao espaço digital.
-Quero uma Coca-Cola – atirou o Pedro, já o empregado tinha virado costas. A mãe não o ouviu, pois já estava concentrada na resposta a uma amiga, a propósito de combinarem a ida ao ginásio na segunda-feira.
Sábado. Final de tarde
João, um jovem dos seus cinquenta e poucos anos (assim dito, por se considerar que existe, agora, a 4.ª idade!), leva a sério a necessidade de controlar o seu colesterol, tendencial e teimosamente excessivo. Certamente já sabe que a opinião dos especialistas, na matéria, não é unânime. Mesmo assim, prefere fazer o seu controlo natural, admitindo que a partir de determinados valores pode ser perigosamente prejudicial.
A tarde de sábado estava manifestamente primaveril apesar de ainda só estarmos no início do mês de fevereiro. João, não usa, enquanto caminha, qualquer artefacto para ouvir música; prefere ouvir a natureza; para ele a multitude de sons da natureza é soberba. Basta dedicar-lhe uma escuta ativa.
Na sua tranquila caminhada repara, involuntariamente, num casal de namorados. Sentados, num daqueles bancos que hoje existe em qualquer jardim, concentravam-se no espaço digital. Ambos pareciam desprezar o aroma daquele magnífico dia. O João caminha durante pouco mais de uma hora e, como habitual, faz um determinado percurso naquele jardim. Por esse motivo, passava com alguma frequência por aqueles namorados que teimosa e hipnoticamente, reparava ele, continuavam concentrados no ecrã táctil. Num dos momentos, ainda ouviu dele, repetidamente, um sonoro F**k You! Deduziu, o João, que o rapaz deveria estar concentrado num daqueles jogos de grupo que proliferam no espaço digital; inferiu, ainda, que aquele impropério era “atirado” a alguém que estaria a comprometer a almejada vitória! Quanto à rapariga, não teve reação àquele inusitado estrangeirismo; continuou, de cabeça baixa, vendo, não se sabe, o quê!
Por coincidência, o João terminava a caminhada, enquanto o casal de namorados se dirigia para o automóvel estacionado ali perto, sem qualquer diálogo que não fosse, cada um, com o seu telemóvel. O Sol estava a despedir-se, o aroma da relva que provavelmente tinha sido cortada pela manhã desse dia, parecia estiolar-se, e o rio que silenciosamente seguia o seu percurso mostrava indícios da sua tristeza; esperava, provavelmente, que aqueles namorados lhe tivessem dado um pouco de atenção. O bando de pardais que se tinha acantonado na cópula daquela grande árvore parecia protestar por o casal não ter sido mais respeitoso perante a hospitalidade que aquele pedacinho da natureza lhes tinha amistosamente oferecido; revoltados, talvez, por ostensiva e desrespeitosamente, aqueles dois terem batido com a porta aos residentes.
O Sol exibia, na limitação da linguagem humana, o que designaríamos como uma postura aparentemente narcísica, vendo-se ao espelho, lá longe, na montanha. Aquele derradeiro e gracioso gesto do dia, não passou despercebido ao João.
Feriado nacional
O casal almoçava num restaurante da cidade. Junto a eles estava estacionado o carrinho de bebé. Lá dentro estava o seu filho de alguns meses. Poucos. Chorando, parecia protestar por não ter melhores vistas. Não faço ideia. A mãe, recorrendo à estratégia de lhe mostrar a luminosidade do seu telemóvel, conseguia interromper por escassos minutos aquele choro que atraia a atenção dos presentes. Logo a seguir despejava sonoramente a sua inquietude, levando a mãe - enquanto o pai vigiava o seu espaço digital - a apertar freneticamente um patinho amarelo, o qual, em virtude daquele gesto, emitia o som que fazia arregalar os olhos da criança. Por momentos, esqueceu-se de chorar. Mas o sossego durou pouco tempo. De novo o menino abre as goelas, e num gesto manifestamente de descontentamento, arremessa para bem longe, ostensivamente, o patinho que a mãe lhe tinha dado. Conseguiu, pelo menos, que do embate daquele infeliz “bicho”, resultasse apenas um curto quá-quá; como se lhe tivesse provocado uma dor que o fez desmaiar!
As iniciativas iam-se esgotando até que, num gesto genial de criatividade, a mãe dá-lhe, finalmente, o telemóvel que mantinha ao lado do prato. E o milagre aconteceu: aquele petiz calou-se. Repentinamente. A cor rosada do seu rosto era agora mais visível. Os olhos movimentavam-se num ritmo alucinante; os trejeitos da boca eram igualmente o reflexo do seu contentamento. Nunca mais chorou. Os pais puderam, finalmente, almoçar descansados.
Saíram os três do restaurante, enquanto aquela criança continuava, silenciosa, com o telemóvel da mãe.
Mais tarde, soube-se, da família Santos de que falámos anteriormente, que os problemas de insucesso na escola do Pedro e da Joana estavam relacionados com o défice de concentração. Quanto à mãe, priorizando sempre a performance laboral em detrimento da criação de vínculos sociais e familiares, caiu numa depressão profunda. O pai, esse, luta contra uma sensação permanente de apatia e de tédio profundos que condicionam e comprometem, seriamente, a sua realização pessoal, profissional e familiar.
Em relação aos namorados soube-se, por mera coincidência, que se tinham separado e ambos frequentavam uma dessas clínicas que têm como objetivo, alegadamente, fazer “desintoxicação digital”!
Mera curiosidade
Li há relativamente pouco tempo que num qualquer país, na Coreia do Sul, penso eu, a obsessão das pessoas com o espaço digital levou à necessidade de recorrer a uma aplicação que se instala no telemóvel, e que alerta o peão, no próprio aparelho, quando está prestes a atravessar uma passadeira. A iniciativa pretende, assim, evitar o número significativo de atropelamentos. Parece que a sinalização para peões estava, naquele modelo mais comum, demasiado alta, sobretudo para quem pensa que o único espaço que existe é o digital.
Outras conclusões
A era digital, mesmo admitindo algumas virtualidades, tem contribuído para a construção do que alguns designam de “sociedade pornográfica”. Com efeito, a pretexto da transparência (ou pseudotransparência), deixámos de privilegiar o mistério, a singularidade do “outro”. Caímos na ditadura do “igual”. Como bem diz Byung – Chul Han, “ A coação da transparência nivela o próprio homem até acabar por torná-lo elemento funcional de um sistema. Tal é a violência da transparência.” Expomo-nos numa espécie de obsessão compulsiva pelo positivo, e damos cada vez menos valor à privacidade; como se quiséssemos despojarmo-nos da nossa singularidade. Despimo-nos, voluntariamente, para um big brother digital que em nome de interesses exclusivamente económicos, agradece; “vendemos-lhe”, de forma gratuita e ingenuamente, a nossa privacidade. Pior: fazemo-lo com prazer. Esquecemo-nos que podemos cair, facilmente, nas malhas da ditadura da (pseudo)transparência. A verdadeira comunicação, a autêntica relação interpessoal exige mistério, alguma “ignorância” quer em relação a nós, quer em relação ao outro; requer, também, a negatividade, a oportunidade de experimentarmos a “demora no negativo”.
No espaço digital não há lugar para o véu que impede a transparência absoluta do outro, preservando a sua privacidade. O véu impossibilita a “visão pornográfica”; não deixa que aconteça a idolatria da transparência. Recorrendo ao mesmo filósofo - Byung – Chul Han, e quase a terminar, partilho o que, neste contexto, afirma: “ Só o que está morto é totalmente transparente”.
Se nos queremos manter vivos, preservemos a paixão pelo mistério, assumamos a sábia ignorância, a vontade permanente e inquietante de perscrutar o que ainda não conhecemos: em nós e no outro. “Conversando” com o filósofo germano-coreano, diz-me, a determinada altura: “ É obscena a transparência que nada encobre, nem mantém oculto, e que tudo entrega ao olhar.” Não permitamos, pois, que nos reduzam à condição de mercadoria, como se fossemos produtos em exposição permanente. Metaforicamente falando, atrever-me-ia a acrescentar: entre a sociedade pornográfica que tudo expõe, e uma outra que privilegie a intermitência do erótico, optemos, para nos mantermos vivos, pela última; o mesmo é dizer, pela carência de transparência.
Jota Eme