O NOVO CORONAVÍRUS - O PEÇONHENTO GLOBAL
Um assassino em série com um protagonismo global inimaginável.
Donde veio o novo coronavírus, o peçonhento? Fugiu, como alguns defendem, de um laboratório algures nos EUA, na Rússia ou na China? Deixaram-no estrategicamente fugir? Veio da China, alegadamente por causa de determinados hábitos alimentares dos seus cidadãos? Há, ainda, para além destas, outras especulações. Certezas, não há! A única que temos é a de que ele está aí: imperturbável e continuando a fustigar, como um vendaval, todos os que se lhe atravessem no caminho.
Invisível, omnipresente e omnipotente arrasa, sem piedade e compaixão, todos os que voluntária ou involuntariamente não tomam as devidas precauções. Não tem obsessão por nenhum perfil de vítima. Pode ser qualquer um. Atua sozinho. A sua principal arma é a invisibilidade. Pode estar em qualquer lugar: casas, igrejas, sinagogas, mesquitas, lares, hospitais, prisões, etc; pode andar de avião, de barco, de automóvel ou de qualquer outro meio de transporte. Percorre, sem precisar de passaporte ou de autorização, os países de todos os continentes, não receando fronteiras. Insensível e furtivo, avança sem receio e sem medo. O seu modus operandi, apesar de conhecido, não permite, por enquanto, detê-lo. Não receia qualquer sistema tecnologicamente avançado de interceção de mísseis ou de outros quejandos; desafia, ostensivamente, os serviços secretos nacionais e internacionais, mesmo os mais conhecidos: o Secret Intelligence Service (SIS), normalmente conhecido como MI6 (Military Intelligence, de Inglaterra), a Mossad - de Israel, o Serviço de Inteligência Estrangeiro - da Rússia, a Central Intelligence Agency (CIA) - dos E.U.A!
Embora não fosse (aparentemente) tão manifesta a sua violência, já convivíamos, antes do novo coronavírus, com outros vírus: o da depressão, da hiperatividade, da obsessão profissional, do materialismo desenfreado, do hedonismo, do desprezo generalizado pelo outro, da exploração despudorada do meio ambiente. Só para referir alguns. Existíamos como se tivéssemos ganhado uma imunidade de grupo, impedindo-nos de perceber que era apenas uma imunidade ilusória; vivíamos, sem o saber, numa pandemia do egocentrismo, do hedonismo e do materialismo; estes vírus atacavam-nos e, nós, como que narcotizados, ignorávamos, alegre e triunfalmente, os seus malefícios. E se alguém alertasse para o contágio nefasto daqueles vírus, era logo escarnecido, maltratado e, não raramente, de forma pejorativa e arrogante, apodado de “filósofo”. Como se pensar diferente, fosse um crime; uma imbecilidade de alguns.
Impregnados de um espírito empertigado de certezas, tínhamos a convicção de que a vida e o mundo, apesar dos vários problemas que teimosamente ignorávamos, caminhavam imperativa e inexoravelmente para a quintessência da felicidade: a inteligência artificial, o mundo digital, o avanço imparável do conhecimento científico com repercussão na qualidade e consequente prolongamento da vida, etc. Pura ilusão. Faltava, afinal, consciencializarmos a ambivalência da vida; experienciar, também, o vírus do sofrimento, da infelicidade; faltava, enfim, assumirmos, com a devida humildade, a consciência da fragilidade e imprevisibilidade da existência humana. E o novo coranavírus traz nos, de forma trágica, essa consciencialização.
O novo coronavírus trouxe, ainda, paradoxal e dramaticamente, o que estávamos a precisar: uma “turbulência existencial.” Alguns dirão que é um exagero. Não. Não é. O vírus veio provocar o homem, despertando-o para o que é essencial nas sua vidas, e que, de outro modo, seria menos provável que acontecesse. O estado verdadeiramente patológico a que homem tinha chegado só podia ser ultrapassado através de uma solução que o remetesse, por via dramática, à sua humilde condição de um ser limitado, transitório, finito, e que não pode tudo. O novo coronavírus tem um alcance e significados pedagógicos que vão para além dos seus efeitos visivelmente trágicos. Este vírus veio, troçando da nossa arrogância, picar - parafraseando Nietzsche - na barriga um homem inchado. Foi como se um simples e desprezível verme tivesse tido a ousadia de pôr em sofrimento a arrogância do "deus homem". Quem quiser entender, que entenda!
O peçonhento inimigo não receia, sequer, retaliações económicas ou financeiras, dispensa negociações de qualquer natureza, e não teme o poderio nuclear de algumas nações ou o seu armamento mais sofisticado. Reduz alguns dos chefes de nações à sua insignificância, colocando-os, de forma inusitada, a suplicar que pare a sua ação. Inclusivamente, sem qualquer tipo de subserviência, ataca alguns deles. Confina milhões de pessoas à sua casa, com receio de serem atingidas e na esperança de serem poupadas.
Os mais fanfarrões, aqueles que, antes da chegada do novo coronavírus, berravam e barafustavam por insignificâncias ou minudências recolhem, agora, com pavor, a casa. Em silêncio. E ironia do destino: o estado depressivo a que antes se tinha chegado por força da hiperaceleração, do rendimento, da produtividade, poderá dar lugar a outro estado depressivo, resultante, agora, de uma pausa que, antes, apenas alguns consideravam urgente! Há especialistas do comportamento humano a recear efeitos perversos desta pausa forçada; aliás, alguns desses efeitos, parecem já estar a manifestar-se.
Os aduladores do materialismo, como se não houvesse mais nada para além desse deus, que se pavoneavam com os seus diversos adornos, estão, agora, acantonados à sua insignificância; sem os símbolos que lhe davam a falsa sensação da sua superioridade, da sua vã, gulosa e ilusória felicidade! Estariam eles convencidos que tinham inventado a felicidade?! Os carros de luxo, por exemplo, tal como os seus homólogos mais “rafeiros”, ficam “quietinhos” nas garagens; o peçonhento trata os seus proprietários de igual modo: todos vão, humildemente, para as filas dos hipermercados e das farmácias. Mais: não distingue classes socias, os patrões de empregados, os banqueiros dos sem-abrigo. Nesse âmbito, é um verdadeiro democrata, respeitando os princípios de igualdade e de justiça, descaradamente maltratados, até aqui, pelos humanos.
E, como se não bastasse, o peçonhento reduz os altivos, os arrogantes, os petulantes, à sua condição irredutível de simples mortais; provoca, ainda, atitudes temor e de terror entre as pessoas que, por forças das circunstâncias, têm de sair à rua: qualquer um pode ter o vírus em potência, tal como há pouco tempo, qualquer muçulmano era um terrorista capaz de se fazer e de nos fazer explodir.
Este assassino ignora, ainda, as consequências que todos, assustadoramente, vaticinam: crise económica sem precedentes, desemprego, desestabilização dos mercados financeiros, etc. Ao peçonhento nada o demove. Também não funciona na lógica obsessiva do rendimento e da eficácia.
Mobilizam-se meios humanos, materiais e financeiros; declaram-se estados de emergência; apela-se a diferentes formas de solidariedade; reúnem-se chefes de estado de vários países; mobilizam-se as forças da ordem; dão-se recorrente e ininterruptamente informações detalhadas e estratégias para evitar o inimigo invisível. Apesar de tudo, continua, infelizmente, a ser difícil detê-lo; pelo menos, não tão depressa como todos almejaríamos. Com exuberância, o vírus exibe-se, indiferente ao alarido à volta dele, nos vários palcos do mundo, passando, simultaneamente, importantes mensagens: temos de aprender a abraçar, solidariamente, o trágico da existência; somos finitos e não podemos tudo; temos de repensar alguns dos nossos valores fundamentais, dando primazia ao ser em detrimento do ter.
Entretanto, a comunicação social faz dele uma vedeta de dimensão mundial: promovem-se debates com especialistas de diferentes áreas, dão-se conferências de imprensa a cada instante, apresentam-se gráficos em grande estilo, com curvas ascendentes, descendentes e achatadas que vão dando conta do número de vítimas (infetados, potenciais infetados, mortos…) do vírus peçonhento, numa lógica absolutamente despersonalizada. Sem esquecer a torrente de imagens (quase sempre aterradoras) de todos os lugares e de todos os países atacados pelo novo coronavírus. E, paradoxalmente, o sofrimento e a morte que nós julgávamos quase vencidos pela deusa ciência, tornaram-se uma realidade insuportavelmente próxima, escancarada, bem visível, como que nos dizendo: todos são finitos! O sofrimento também faz parte da vossa existência! Repensem, com urgência, a vossa condição de simples mortais! Libertem-se do vosso ego narcísico! Tornem-se hospedeiros do outro que desespera pelo vosso olhar, escuta e amor solidários.
A casa, aquele lugar de que saímos muito cedo e à qual regressávamos muito tarde, alegadamente por motivos profissionais, é, agora, o nosso porto seguro, o nosso refúgio. A quarentena, dizem-nos, é o melhor escudo contra o terrífico assassino. Agora, a palavra de ordem é: pratiquem o distanciamento social! Mas que grande ironia! Não era já isso que fazíamos antes? Não andávamos nós mais afoitos nas redes sociais como se fosse esse o meio privilegiado de nos relacionarmos? Não era preferencialmente por esse espaço digital que trocávamos impressões, abraçávamos, beijávamos, felicitávamos, comunicávamos? Seremos capazes de, com esta recente experiência, invertermos essa tendência? Ou, pelo contrário, vamos intensificá-la? Fica a dúvida que, muito provavelmente, obterá resposta num futuro próximo. Sejamos realistas: se recorrermos à História mais recente da humanidade, aos acontecimentos trágicos pelos quais já passou, estes não foram, infelizmente, tão pedagógicos como seria expectável. Algumas das mudanças atitudinais e comportamentais que se esperavam da humanidade, não aconteceram.
Curiosamente, o vírus peçonhento, concede-nos, apesar da sua faceta assassina, alguns privilégios: estar aconchegadinhos no lar, comendo, bebendo, convivendo. Dá-nos tempo para fazermos o que muitas vezes desprezámos, ou seja, pensar em nós e nos outros; estimular a solidariedade, valorizar a dimensão espiritual, reconhecer a importância da pausa. Será que o estamos a conseguir? Será que perceberemos, desta vez, que a nossa existência vai para além do espaço digital? Que a dimensão espiritual no ser humano exige o abraço tátil, a escuta ativa, a solidariedade presencial, o reconhecimento da interdependência entre todos, a abertura ao mistério da vida e do mundo? Será que ainda vamos a tempo de evitar, como refere Byung-Chul Han, um “enfarte da alma”? Esperemos que sim. Parafraseando, ainda, este filósofo, oxalá que esta pausa sirva para “…devolver ao mundo o seu romantismo, redescobrir a terra e a sua poética, devolver-lhe a dignidade do misterioso, do belo, do sublime.”
Vamos aguardar para confirmar se o vírus constituirá, efetivamente, uma oportunidade de mudança. Talvez possamos esperar e acreditar que o período pós-pandemia nos traga novos desafios ético-morais e existenciais; uma espécie de metamorfose do espírito:
- libertando-nos do eu egocêntrico e tornando-nos mais solidários;
- predispondo-nos para a “escuta hospitaleira” do outro; para a proximidade pessoal;
- sensibilizando-nos para a “sociabilidade do sofrimento”;
- substituindo a primazia do rendimento e da eficácia, pela lógica da solidariedade global;
- privilegiando a corporização e personalização do encontro, da comunicação presencial, em detrimento da “interconexão digital”;
- resistindo à autoalienação e autoexploração pelo trabalho;
-assumindo um pensamento crítico e construtivo em relação à vida e ao mundo;
- caminhando (a nível mundial) para a globalização de soluções promotoras da realização dos princípios e direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
- respeitando cada vez mais o ambiente e a natureza;
-substituindo o culto idolátrico do ter pela busca permanente do ser.
Com otimismo moderado, todos estamos à espera, ansiosamente, de epílogos festivos; que estes se imortalizem em cada instante da nossa efémera existência, pois temos a obrigação de saber que nada nos garante a definitiva estabilidade.
Jota Eme