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Bricolage da Escrita

Bricolage da Escrita

A PANDEMIA VS. REFORÇO DO DESPOTISMO DIGITAL

A “era pandémica”, designemo-la assim, coincide com uma explosão ainda maior das novas tecnologias, do recurso ao mundo digital, acrescida da emergência de outros fenómenos de natureza socioeconómica e política, designadamente, o agravamento substancial do desemprego e os consequentes efeitos sociais, desaparecimento e/ou reorganização/reinvenção de empresas com especial incidência nalguns setores económicos, reconfiguração das formas de trabalho com especial destaque para o teletrabalho. Tudo isto significa que os desafios são enormes e o modus operandi (político, económico, cultural, social) não poderá ser o mesmo que vigorou até à altura  que foi declarada (pela Organização Mundial de Saúde), a pandemia decorrente do novo coronavírus – Covid-19. 

Não devemos, perante o manifesto protagonismo digital e tecnológico no nosso quotidiano,  continuar a meter a cabeça na areia, como se não fosse nada connosco e corresse tudo na perfeição; como se ponderar e refletir os seus impactos menos positivos no ser humano,  fosse mera especulação filosófica;  como se o mundo digital e tecnológico trouxesse acoplado  o rótulo de intocável por representar o esplendor do progresso; como se todos os que ousam questionar os seus inconvenientes, limitações e perigos, não passassem de meros conservadores, inadaptados ou resistentes à inovação; como se o nível de dependência digital e tecnológica fosse inquestionavelmente natural e não trouxesse qualquer inconveniente ou necessitasse de qualquer questionamento.

Neste contexto, Byung-Chul Han (filósofo contemporâneo de origem sul-coreana e professor universitário em Berlim), está em consonância com o que dissemos, quando faz este reparo: “[…] embriagamo-nos com a tecnologia digital, enquanto somos incapazes  de avaliar plenamente as consequências da nossa embriaguez […].”

O discurso daqueles que exaltam a inevitabilidade do mundo tecnológico e digital tem a pretensão de evitar qualquer discordância, procurando, simultaneamente, gerar a convicção de que não devemos levantar obstáculos à marcha celestial de um projeto tecnológico que se perfila como a solução para todos os problemas da nossa existência!

Especialmente no campo do teletrabalho, espera-se uma adesão cada vez maior a esta modalidade de trabalho. Contudo, também aqui, impõem-se algumas dúvidas, como teremos oportunidade de verificar. 

Uma notícia recente sobre a Liberty Seguros, empresa internacional sobejamente conhecida, refere que a mesma passa a estar praticamente a 100% em regime de teletrabalho.

Poderemos, assim, estar a caminho, não só no mundo laboral como noutras dimensões do nosso quotidiano, para a omnisciência e omnipresença digital e tecnológica, sendo, por isso, previsível, a intensificação da vigilância e o consequente maior controlo e/ou modificação/manipulação dos nossos comportamentos. No caso específico do mundo laboral, o trabalhador pode, inclusivamente, ficar subjugado a uma ferramenta que o coloca em permanente estado de alerta emocional e psicológico.

Atente-se que, em Portugal, quase passou despercebido o Despacho n.º 2705/2021, de 11 de março, que, a pretexto da “simplificação administrativa”, introduz, logo no “sumário”, linguagem que identifica procedimentos que poderão ser conectados com vigilância e controlo digital - “Sumário: Identificação de pessoas físicas através de procedimentos de identificação à distância com recurso a sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial.” Deste pequeno excerto, facilmente se induz que o Estado se aproxima, no que ao controlo dos cidadãos diz respeito, dos mesmos princípios e procedimentos que as empresas adotam em relação aos seus trabalhadores (agora, prefere-se a palavra - colaboradores!).

A intenção do “capitalismo da vigilância”, que adiante definiremos, é projetar-nos num mundo virtual ou, como alguém (de quem não me recorda o nome) já referiu, inserir-nos na “internet das coisas”, de tal forma que nem sequer damos por isso.

Na sequência do que acabámos de dizer, tudo indica que, em vez de falarmos com as pessoas, falaremos, frequentemente, com os objetos de casa que estarão, adequada e estrategicamente preparados para nos alertar para as nossas diversas necessidades, como se tivéssemos um assistente digital que nos liberta de qualquer tipo de preocupação.

Assim, num futuro próximo, as pessoas poderão ser monitorizadas pelo assistente digital que determinará: quando, como e o que devemos comer; quando e quantas horas devemos dormir; que medicamentos devemos tomar e a que horas; que desporto devemos praticar; que alimentos faltam no frigorífico, entre outras dimensões do nosso quotidiano pessoal. E isso não é bom? Perguntar-se-á.

Na verdade, não nos parece que essa perspetiva do futuro seja promotora da autonomia e liberdade responsável do ser humano. Corremos o risco, inclusivamente, de passar de autónomos a autómatos. Já não seremos nós que determinaremos o que é preciso; ficaremos reféns de uma entidade exterior a nós, que tudo comanda e controla; ficaremos cerceados do poder de escolher e de decidir; transformar-nos-emos em marionetas manobradas de acordo com a vontade de uma entidade, da qual nem nos apercebemos que existe. Resta-nos saber se haverá algo de único em nós que conseguirá resistir à voracidade da máquina.

Os confinamentos a que temos estado sujeitos têm vindo a estimular uma maior dependência do universo digital, facilitando, justamente, os interesses e objetivos do capitalismo da vigilância, assim designado pela filósofa norte-americana Shoshana Zuboff (A Era do Capitalismo da Vigilância, 2020).

Por sua vez, não podemos alhear-nos do desenvolvimento da chamada geração do “5G” que, para além de acelerar a velocidade da internet em dez vezes mais, trará mudanças significativas nas nossas vidas nos mais diversos domínios, através da “hipersensoralização” e robotização crescentes.

Como vaticinam os especialistas na matéria, a “internet táctil”, através de dispositivos específicos, tenderá a substituir ou imitar os sentidos do ser humano. Pretende-se, em última instância, “robotizar” a dimensão idiossincrática da sensibilidade humana.  As soluções para muitos dos nossos problemas serão habilmente monitorizadas por especialistas em modo de telepresença, ajudando-nos a resolver as mais diversas questões do quotidiano de cada um.

Infelizmente, não consta dos grandes desafios do 5G (já foi pré-anunciado o 6G) se inclua alguma hipótese tecnológica para pôr fim a alguns dos maiores flagelos atuais da humanidade (a fome, a guerra, as pandemias, a desertificação, a má distribuição da riqueza, entre outros).

Só a título de exemplo, e como mera apreciação marginal ao objetivo do presente texto, pensemos nalgumas situações absurdas como a que acontece no Iémen: (i) cinco milhões de pessoas correm o risco imediato de morrer à fome; (ii) 16 milhões não têm água potável; (iii) 22,2 milhões precisam de proteção urgente.

Do mesmo modo, é particularmente preocupante, a exploração do lítio na América do Sul com o impacto desastroso no meio ambiente e na subsistência de alguns povos indígenas, bem como a crescente influência do radicalismo religioso muçulmano em Moçambique.

Na India, o país que representa, diz-se, a maior democracia do mundo (não a melhor, com toda a certeza…!), em leituras recentes, verifiquei que metade da sua população defeca ao ar livre e uma parte considerável de esgotos não é objeto de tratamento. Paradoxalmente, neste país estão sediadas importantes empresas que produzem vacinas e medicamentos; o país é considerado, por isso, uma espécie de “farmácia” à escala planetária!

A mão de obra barata, leva multinacionais, concretamente no ramo biotecnológico, a instalarem-se na India; aqui, uma minoria enriquece despudoradamente, enquanto a esmagadora maioria da população vive na miséria, sem condições básicas, votados ao abandono, desrespeitadas na sua dignidade humana.

No plano sociocultural, o sistema de castas ainda existe; as crianças são exploradas em alguns setores da economia. Na agricultura, os terrenos, “vítimas” de culturas intensivas e de pesticidas, “contaminam-se” e contaminam.

É, por isso, legítimo, face a estes e a outros exemplos, que nos interroguemos: que modelo de desenvolvimento é este? Podemos, nestas circunstâncias, falar de progresso da humanidade? Dispensamo-nos de escrever a resposta por ser demasiado óbvia.

Retomando o nosso objeto de estudo, capitalismo da vigilância (também chamado pelos académicos Nick Couldry  e Ulises Mejias de “colonialismo de dados”- in Revista Expresso, pp. E24, 16.04.2021), requer, antes de tudo, um meio digital. É graças a ele que é sequestrada a informação sobre a experiência humana enquanto matéria-prima por excelência. A vigilância permite a recolha de dados comportamentais, transformando-os e adaptando-os às nossas necessidades, desejos e preocupações; como se fosse imperioso para a obtenção de lucro, estar na posse da certeza quanto aos nossos comportamentos intrínsecos (sentir, pensar, fazer) a curto, médio e longo prazos. O volume dos resultados aumenta tanto mais, quanto maior fiabilidade oferecerem os dados comportamentais que são vendidos às empresas clientes.

Sem rigor normativo, a falta da proteção da nossa privacidade continua a não ser uma prioridade. O capitalismo da vigilância, sem grandes obstáculos, segue o seu caminho através de práticas de obtenção de receitas ilegais, crescendo e consolidando-se, segundo o seu próprio arbítrio!

Entusiasmados com as oportunidades que a internet nos dá, nomeadamente ao nível da informação, esquecemos que por detrás das nossas pesquisas (quaisquer que elas sejam!...) se esconde um escrutínio apertado, uma intrusão descarada na experiência humana, em toda a nossa ação, com o intuito de reduzi-la a previsões comportamentais para fins comerciais.

Há um aspeto particularmente importante que, através de um mero exemplo, nos ajuda a perceber a dinâmica dos capitalismos da vigilância.  A Google, por exemplo. Esta grande empresa desempenha uma dupla função: por um lado faculta-nos o acesso praticamente a tudo que almejamos do ponto e vista do conhecimento, mas enquanto navegamos nas suas “ondas”, somos acompanhados de perto, monitorizados; todos os nossos movimentos ou comportamentos são continuamente rastreados para deles dar conhecimento a determinados clientes!

 A Google como outras empresas congéneres cobiça, ferozmente, tudo o que é tido como experiência humana. Por isso, o capitalismo da vigilância seduz-nos primeiro (com o que nos “oferece”) para, intencionalmente, nos reduzir à condição de produtos desejados pelas empresas; faz de nós, em última instância, o peixe que inocentemente morde o isco, acabando por soçobrar nas malhas da avidez do lucro.

Convoquemos, aqui, como particularmente importante para nos ajudar a elucidar o assunto, Shoshana Zuboff, no seu livro, A Era do Capitalismo da Vigilância: “A sociedade ideal da Google é um povo de utilizadores remotos, não uma cidadania. Idealiza pessoas informadas, mas apenas no que interessa à empresa. Quer que sejamos dóceis, harmoniosos e, acima de tudo, que lhe estejamos agradecidos.”

O mundo virtual vai substituindo, de “mansinho”, o mundo real; ou, se preferirmos, o mundo virtual tem a pretensão de reproduzir, cada vez com maior rigor, o mundo real. Isso é inevitável, diz-se de uma forma manifestamente conformista.

No fundo, é como se admitíssemos, sem qualquer constrangimento, que a vida fora da rede digital, não faz qualquer sentido, como se, na sua essência, a realidade fosse virtual, as regras da sociabilidade no quadro redutor da interconexão virtual fossem compagináveis com as regras da relação interpessoal física e/ou presencial; como se houvesse um comando exterior que, mediante determinados estímulos, nos dita a melhor forma de agirmos, de nos comportarmos; como se a liberdade pessoal, o livre arbítrio, a interioridade do ser humano, não tivesse qualquer importância, fosse uma mera ilusão!

Aliás, esta perspetiva antropológica era defendida, com grande convicção, por Frederic Skinner (1904-1990), um behaviorista norte-americano que, no essencial, considera o livre arbítrio como uma ilusão: “O homem autónomo é um truque utilizado para explicar o que não podíamos explicar de outra forma” (citado por João Monteiro - A Escola Que (Con)Vence, 2019).  Neste livro, aliás, é feita uma análise exaustiva ao pensamento antropológico de F. Skinner, comparando-o com a conceção antropológica do psicoterapeuta e pedagogo Carl Rogers.

Em última instância, importa salientar que Skinner é apologista de uma visão científica do ser humano que visa, sobretudo, controlar, moldar e prever o comportamento humano.

Há quem entenda, como Skinner, que não há lugar para a autonomia do ser humano; que essa qualidade é uma ideia meramente romântica! Skinner retira ao homem a capacidade de ser arquiteto de si próprio; ele é produto do meio. O pró-ambientalismo skinneriano condena o homem a uma espécie de animal que basta domesticar sob determinadas condições.

Atualmente, pela via do capitalismo da vigilância, caminhamos para a concretização da teoria de Skinner, ou seja, o comportamento do ser humano parece ser cada vez mais objeto de controlo externo.

Retomando de algum modo o ceticismo já manifestado anteriormente, terá que ser mesmo assim?! Pensamos que não. E não estamos sozinhos nesta convicção.

Mesmo que pareça absurdo admiti-lo, no mundo digital, somos frequentemente vítimas de predadores insaciáveis de vantagens comerciais e de lucro. Através de vários instrumentos tecnológicos, a interconexão digital segue, de forma imparável, o seu caminho rumo a uma sociedade em rede, como se de uma manada se tratasse. A elite que detém o saber e o poder – os capitalistas da vigilância – dirigem o rebanho (é assim que nos veem).

Numa entrevista concedida ao jornal brasileiro “Folha de S. Paulo” (2019), Edgar Morin, não propriamente neste contexto em concreto, mas que podia ajustar-se perfeitamente aqui, refere a determinado momento: “[…] continuamos como sonâmbulos, rumo ao desastre […]”.

Importa lembrar que um dos maiores desafios da humanidade continua a ser, de facto, impedir que as novas tecnologias, nos expropriem da liberdade individual, nos ditem a nossa existência, como se não pudéssemos ser seus legítimos autores, ou, como se o ideal democrático fosse preterido em prol da afirmação de um poder de controlo e vigilância - um poder de costas voltadas para a liberdade e vontade individuais.  

Já no período anterior à situação da pandemia, vivíamos uma revolução tecnológica que se vinha afirmando de forma acelerada com manifestações diversas, nomeadamente no domínio da inteligência artificial. Como que a acompanhar e/ou a imitar a velocidade dos avanços tecnológicos, o homem entregava-se exaustivamente ao trabalho, como se não houvesse amanhã, ou outros mundos para além desse.

Mesmo numa situação de clara autoexploração e de alienação, o homem sentia-se, ilusoriamente, autónomo e realizado. Não percebia, no mundo laboral, que o seu “amo” não o dominando pelo chicote, pela força física, incutia-lhe a ilusão de que entregue a si próprio e aos seus objetivos, ele era, afinal, dono de si. Puro engano. Exausto, queixa-se do stress, da permanente angústia, da falta de tempo para a família, da sensação de vazio da sua existência e, em estados mais graves, de depressão profunda. Eram, com certeza, as sequelas de uma ilusão que o próprio teimou em negar; eram os estragos da dependência de uma “droga” que, pouco a pouco, lhe foi narcotizando o pensamento, afastando-o da verdadeira felicidade que, na essência, é incompatível com o materialismo que perseguia e priorizava.

Da celeridade vertiginosa, da fugacidade e volatilidade de tudo que é material, emerge a solidão, a melancolia, a ansiedade, o medo, a dor, a angústia e o desespero representados no Grito do pintor norueguês, como que num apelo incontido à pausa, à contemplação, à emergência de um estado de tranquilidade e de serenidade.

Lembrámo-nos, neste contexto, de convidar Tolentino Mendonça a dar a sua douta opinião. Assim, escreve ele: “[…] A nosso favor evocamos sofisticadas razões de rentabilidade e eficácia, substituindo a audição profunda do nosso espaço interior e o discernimento da nossa sede por pílulas que prometem resolver mecanicamente o nosso problema […] É tão fácil apegar-nos à ideia de poupar cinquenta e três minutos e sacrificarmos a isso o prazer de caminhar devagarinho à procura de uma fonte. É tão fácil idolatrarmos a pressa e a vertigem neste nosso tempo hipertecnológico e que tem o culto da instantaneidade, da simultaneidade e da eficácia[…].”

Na contemporaneidade, designadamente até à era da COVID-19, estavam a desvanecer-se as pausas, ainda que, paradoxalmente, desesperássemos por elas. Por isso, ouvíamos recorrentemente a expressão – “não tenho tempo”. As pausas contrariavam a pressa e a contínua ansiedade de fazer, nada parecia deter o permanente alvoroço do nosso quotidiano.

A alienação não era só laboral. Simultaneamente, e provavelmente como consequência dessa, davam-se, também, a alienação familiar e social. O tempo escasseava para a convivialidade, para uma existência de interações recíprocas e salutares. Quando não estávamos afincada e entusiasticamente entregues ao trabalho, corríamos para os ginásios, consumíamos prazerosa e freneticamente tudo o que era perecível, deleitávamo-nos com os inúmeros gadgets, e privilegiávamos, com muita frequência e em inúmeras circunstâncias, as redes sociais.

Na era pré-pandemia clamávamos por pausa(s) que funcionassem como represas à enxurrada incontrolável da nossa existência; desesperávamos, angustiados e ansiosos, por estarmos permanentemente em fuga e sem rumo; por nos encontrarmos sob a tortura da aceleração da vida, condição, julgávamos nós, da realização plena!

Reiterando o pensamento de Byung-Chul-Han, este diz-nos o que verdadeiramente acontece: “ […] na realidade, não se trata de verdadeira aceleração da vida. Há simplesmente mais inquietação, confusão e desorientação na vida […] daí que na vida não haja momentos decisivos ou significativos […].” Em última instância, nada dava significado à nossa vida, porque todos os momentos careciam de tempo, de fruição e maturação.

Agora, as pausas correspondentes ao período de confinamento também não redundaram, globalmente, em períodos de recolhimento espiritual, de aprofundamento da nossa existência; impostas, estas pausas provocaram, na maioria de nós, sentimentos de desorientação, inquietação, angústia, ansiedade. Acresce a profusão de informação diária que nos provocava também fadiga e dificuldade em perceber, com serenidade e rigor, não só o momento que se vive, mas também o futuro e a sua incógnita.  

Talvez pela sua natureza essencialmente coerciva, a pausa do confinamento, não foi capaz de nos convencer, ainda, da importância e da virtude da “experiência da duração”; não logrou entusiasmar-nos para a aprendizagem da serenidade e, sobretudo, da esperança tranquila, paciente e otimista no futuro. Sem querermos abusar, socorremo-nos, também aqui, para explicar melhor o que queremos dizer, de Byung-Chul Han: “A época da pressa e da aceleração é […] uma época do esquecimento do Ser […] A vida ocupada, à qual falta toda a dimensão contemplativa, não é capaz da amabilidade do belo […] Se se expulsar dela todo o elemento tranquilo, a vida acaba numa hiperatividade letal […].”

Apesar da pausa do confinamento não conseguimos, com ela, o sossego de que sentimos tanta carência; não logramos, ainda, superar o sentimento de ansiedade que nos vai dilacerando o nosso “espaço” interior.

Com efeito, o período que antecede a pandemia e os dias de hoje, têm em comum a sensação da volatilidade e/ou efemeridade de tudo o que nos rodeia; continuamos a aspirar a uma explicação que nos outorgue um sentido para a nossa existência; acima de tudo, aspiramos por tranquilidade e serenidade; sedentos, enfim, de nos demorarmos em nós e nos outros.

A cultura táctil que tanto lamentámos perder nos vários confinamentos a que nos fomos submetendo, já se encontrava, antes, em franca crise; em quase estado de coma, perdoe-se-me, talvez, o exagero.  O afeto, expresso, por exemplo, no beijo e no abraço caminhava para a “desmaterialização”, ganhando, progressivamente, o estatuto cada vez mais virtual.

Embora não fosse tão manifesta a sua violência, já convivíamos, antes do aparecimento do novo coronavírus, com outros tipos de vírus: o da depressão, da hiperatividade, da obsessão profissional, do materialismo desenfreado, do hedonismo, do desprezo generalizado pelo outro, da agressão despudorada ao meio ambiente, isto só para referir alguns.

Existíamos como se tivéssemos ganhado uma imunidade de grupo, impedindo-nos de perceber que era apenas uma imunidade ilusória; vivíamos, sem o saber, na pandemia do egocentrismo, do hedonismo e do materialismo. Estes vírus atacavam-nos e, nós, como que narcotizados, ignorávamos, alegre e triunfalmente, os seus malefícios. E se alguém que eu designaria, aqui, por recurso à metáfora, como os “epidemiologistas do pensamento”, tivessem alertado para o contágio nefasto daqueles vírus, era logo escarnecido, quem sabe até, maltratado. Como se pensar diferente, fosse um crime, uma imbecilidade, como se o critério de verdade andasse, forçosa e inquestionavelmente, de mãos dadas com o pensamento da maioria.

Se penetrarmos verdadeiramente no universo digital, facilmente percecionamos que, em virtude dele, assistimos a uma mudança de paradigma: no plano das relações interpessoais e/ou sociabilidade e na dimensão laboral. Por outras palavras, a assunção do mundo digital traz mudanças significativas na nossa mundividência e no nosso comportamento em geral. É com prazer que recorremos à ajuda, para percebermos melhor esta realidade, de Byung-Chul Han: “[…] a comunicação digital causa uma forte erosão na comunidade, do nós. Destrói o espaço público e agrava o isolamento do ser humano. É o narcisismo e não o amor ao próximo que domina a comunicação digital […].”

Os confinamentos contribuíram para ficarmos ainda mais enfeitiçados pelo universo digital, levando-nos a escancarar a porta para uma invasão crescente da nossa privacidade e, simultaneamente, para a dificuldade progressiva em distinguir as realidades familiar, laboral e de lazer. Foi como se, de repente, as nossas casas passassem a ter paredes de vidro, proporcionando a estranhos, uma visão ampla de tudo que se passa dentro do nosso “território”, um espaço que deveria ser inviolável e intimamente nosso.

Encantados com o novo mundo que nos anunciam, deixamos que nos invadam e destruam estrategicamente o nosso santuário, como se, subitamente, não precisássemos de um refúgio exclusivamente nosso, sem intrusos. A intimidade que nos oferecia a casa, enquanto muralha inabalável, não resistiu: o canhão digital trespassou-a sem dó nem piedade (tudo é possível em estado online!!).

Perante aquela invasão, claudicámos como se isso até fosse uma oportunidade que jamais podíamos perder. Apoderou-se de nós o medo terrífico de que podíamos ficar para trás, excluídos para todo o sempre; com o receio de sermos abandonados como portadores de uma peste incomensuravelmente mais pestilenta e pegajosa do que a COVID-19!  Também nós abdicámos do mistério e dissemos quase em uníssono: para que o queremos?! Dêem-nos antes esse maravilhoso reino digital para que nada nos falte e nos possamos guiar apenas pela certeza! Não ao mistério! Gritamos energicamente e inebriados de alegria! E o “Senhor digital” congratulou-se com tamanho ato de fé e de gratidão!

No mundo digital deve reinar a transparência, a certeza. “Que tendes a esconder”, perguntam-nos os detentores da sapiência digital, ávida de transparência, mesmo da que se aninha no nosso íntimo mais recôndito. Isso do mistério é para os pobres de espírito, dizem-nos ainda, é para os ímpios que renegam a religião digital! Pois em verdade vos digo, acrescentam os áugures do oráculo, esses já estão condenados à exclusão para todo o sempre e serão severa e impiedosamente castigados pela sua heresia! Só falta dizer que para os que não alinharem na interconexão digital, haverá choro e ranger de dentes de profundo arrependimento!

Por sua vez, corremos o risco de caminharmos, com esta última invasão do “glorioso digital”, para fortalecer, no plano laboral, a autoexploração com inevitáveis e graves prejuízos para as dimensões da nossa vida pessoal, familiar, de lazer e social.  Os riscos de vivermos indistintamente nessas dimensões sem o verdadeiro aroma intrínseco de cada uma delas, é enorme. Crescerá em nós a estranha sensação de desfrutarmos apenas de odores indistintos e identidade nunca experimentada. Por isso, com os confinamentos sentimos todos a inquietação, alguma confusão e, de algum modo, a desorientação. A nossa casa constituir-se-á, cada vez mais, como o universo privilegiado da nossa ação em toda a sua extensão.

A situação do confinamento que, de algum modo, poderia constituir uma oportunidade para, finalmente, reequacionar o que deveriam ser, doravante, as nossas prioridades, tornou-se, com a nossa complacência, uma ilusão perdida, potenciando um dos maiores ataques à nossa privacidade.  

Talvez vencidos pelo medo, permitimos que fosse desferido um rude golpe contra aquilo que considerávamos íntima e profundamente nosso: a casa e tudo que simbolicamente representa para cada um de nós. De tantas vezes nos dizerem e jurarem a pés juntos que a salvação e a cura para todos os males da humanidade estavam no mundo digital, abdicámos da garantia protetora do lar, delegando-a numa entidade abstrata a quem atribuímos sabedoria superior e poderes mágicos.

Sob diversos pretextos, incluindo o do teletrabalho, aceitámos o reforço e inevitabilidade da invasão do nosso especial refúgio. Com o nosso consentimento deixámos profanar o nosso santuário. Foi como se, voluntariamente, aceitássemos ser um sem-abrigo na nossa própria casa; como se anuíssemos, enfim, ser despojados do que faz parte indissociável da nossa dignidade; criámos, sem quase nos darmos conta, rituais de hospitalidade ao mundo digital. Pior que isso, é considerarmos, nesse contexto, a sua inevitabilidade e normalidade. 

Talvez nesta convicção residam vários perigos, incluindo o que Sobrinho Simões designou de “deslassar da sociedade” (Entrevista - Jornal Público, 2020) que, em última análise, pode significar a aceleração da “descoisificação e descorporalização do mundo”.

O teletrabalho pode, sem nos darmos por isso, e na senda da rentabilidade, isolar-nos ainda mais e, consequentemente, fazer-nos perder o sentido de comunidade. A comunicação e/ou interconexão digital extensiva ao mundo laboral aumenta o perigo do isolamento, da autoexploração individual, com elevadas probabilidades de, por via disso, desembocarmos numa sociedade ainda mais depressiva, angustiada e, por sua vez, mais doente! “[…] A sociedade atual não é uma sociedade do amor ao próximo na qual nos realizaríamos reciprocamente. É, antes, uma sociedade do rendimento, que nos isola uns dos outros […]” (Byung-Chul Han, No Enxame: reflexões sobre o digital 2016).

A interconexão digital não promove propriamente maiores vínculos, nem nos traz maior proximidade. Para quem não concordar com esta análise, pergunta-se: como se justifica, apesar da contínua comunicação digital, a repugnante sensação de isolamento e de solidão que tantos afirmam sentir? Ou seja, a hipercomunicação não é, definitivamente, sinónimo de socialização, de convivialidade comunitária. Ora, nunca é demais reafirmá-lo, o homem, na sua essência, é um ser relacional. Reforçando a natureza social do ser humano, Aristóles afirmou que   “O homem que consegue viver sozinho, ou é um Deus ou uma besta.”

O capitalismo da vigilância está com caminho livre para, de forma pacífica, explorar a sua matéria-prima, pois para os que o representam, não somos mais nada para além disso mesmo: produtos ou matéria em bruto a transformar, conforme os ditames do mercado e do lucro. Somos todos implacavelmente submetidos às leis do mercado, dominados por uma ditadura mercantilista.

Nesse sentido, Shoshana Zuboff recupera de Hannah Arendt (Origens do Capitalismo, 1990), o conceito de “tirania” sobre a qual refere: “a tirania é uma perversão do igualitarismo, porque trata todos os indivíduos como igualmente insignificantes.” Perfeitamente ajustável ao capitalismo da vigilância.  Quem diria melhor?!

É importante ter em consideração as palavras de Boris Jonhson, em setembro de 2019, aquando da 74.ª Sessão da Assembleia - Geral da ONU, relativamente aos benefícios e riscos da tecnologia, que comparou ao mito grego de Prometeu. Ao concentrar todo o discurso da ética por trás das tecnologias que estão a revolucionar o mundo, e que tanto podem ser usadas para o bem, como para exercer opressão, controlo e condicionar a liberdade dos cidadãos, o primeiro-ministro inglês referiu, então: “[…] Está em jogo se alcançamos um mundo orwelliano dedicado à repressão, censura e controlo, ou um mundo de emancipação, debate e aprendizagem, em que a tecnologia acaba com a fome e as doenças, mas não com as liberdades […].”

O exercício de uma cidadania global responsável exige, mesmo que reconheçamos dificuldades face aos poderes mundiais instalados, designadamente no âmbito do capitalismo da vigilância, a criação de normas que evitem o despotismo digital. 

Os mais otimistas (onde me incluo) acreditam que será possível, ainda, frustrar os “vigilantes digitais”, impedindo-os de prosseguir com o processo de domesticação do ser humano e a consequente perda do seu direito à liberdade e indignação individuais.  

 

Jota Eme

 

Principal bibliogafia consultada no âmbito do presente texto:

O Aroma do Tempo, 2016 - Byung-Chul Han

No Enxame – Reflexões Sobre o Digital, 2016 - Byung-Chul Han

A Expulsão do Outro, 2018 - Byung-Chul Han

O Elogio da Sede, 2018- José Tolentino Mendonça

A Escola Que (Con)Vence, 2019 - João Monteiro

A Era do Capitalismo da Vigilância, 2020 – Shoshana Zubof

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