A SOLIDARIEDADE NÃO TEM FILHOS NEM ENTEADOS
Há poucos dias, Miguel Sousa Tavares, num dos artigos que escreveu para o jornal Expresso, dizia que “… isto de pensar pela própria cabeça incomoda sempre os idiotas que se imaginam úteis.” Eu complementaria dizendo que estamos marcados por uma cultura de subserviência cultural, quase despótica, que tende a desclassificar e menosprezar tudo que não encaixa nos ditames de uns poucos que se arvoram donos da verdade. Pior do que isso, é que a maioria segue esses gurus, como os carneiros o seu pastor. Nos mais diversos domínios!
Miguel Sousa Tavares escrevia daquele modo por, no âmbito desta invasão russa à Ucrânia, não concordar com algumas opiniões que vão sendo veiculadas a esse respeito. Depois de ler o seu artigo, confesso que não concordando na integra com ele, reconheço que faz uma análise critica e pertinente sobre o assunto.
Eu diria que os acontecimentos horripilantes e dramáticos que nos últimos dias nos têm assolado, a propósito da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, vêm dando origem, concretamente por parte da TV, a um chorrilho de interpretações nem sempre esclarecedoras, mas também a uma proliferação de imagens que provocam em nós uma atitude de repulsa e de indignação e, simultaneamente, um estado psicológico (consciente e/ou inconsciente), de intranquilidade e de ansiedade.
Este clima de incerteza, mas sobretudo a desumanidade que, sob diversas formas, nos entra pela casa dentro, causa-nos para além da profunda revolta, uma angústia quase insuportável.
Por isso, a tendência é, quase sempre, para exacerbarmos emoções em detrimento de alguma racionalidade. E é precisamente isso que não podemos deixar que aconteça. É quando perdemos este equilíbrio, ou seja, a gestão harmoniosa entre a razão e a emoção que corremos maiores riscos de sermos manipulados e engolidos pela (des)informação que nos chega em catadupa.
Na minha modesta opinião não é tempo, por exemplo, de precipitada e emocionalmente elegermos heróis. Todos têm pés de barro! Todos! É tempo de, como se vem fazendo, prestar solidariedade, sob diversas formas, a quem precisa, promovendo, de todas as formas, a paz: quer por parte dos responsáveis políticos, quer por parte de todos nós. A grande prioridade, agora, é essa.
E a propósito de solidariedade, os tempos dramáticos que estamos a viver mostram que a natureza humana também pode ser profundamente boa. Com efeito, temos assistido a atos verdadeiramente altruístas e, sob diversos aspetos, louváveis; colocarmo-nos no lugar do outro do modo como o estamos a fazer, é a melhor e maior expressão da verdadeira empatia; reconhecermos que todos somos vulneráveis é a condição sine qua non para nos aproximarmos solidaria e desinteressadamente uns dos outros.
Acontece, porém, que a solidariedade não é propriamente “filha” de um qualquer espaço geográfico e muito menos do puro imediatismo. Pelo contrário: a solidariedade deve ser inclusiva e extensiva a todas as latitudes e a todos os povos, agora e sempre. Deve ser uma prática para pessoas que estão longe, ou que estão perto.
A solidariedade também se afirma na luta contra a discriminação social, étnica, cultural, geográfica, sexual, ou contra qualquer outra forma de discriminação. A solidariedade é inclusão, aceitação de todos, defesa da dignidade humana independentemente de qualquer condição.
A solidariedade não espera pela publicitação ruidosa da desgraça para se afirmar, nem pode terminar quando se apaga o fulgor daquelas imagens onde tantos clamam por socorro, pela nossa ajuda.
A solidariedade não pode andar a reboque e ter a cadência do “espetáculo” deprimente que, por via dos meios de comunicação social, especialmente via TV, nos invade a cada segundo que passa. A solidariedade não pode desertar como acontece com as notícias.
Ainda recentemente éramos “convidados” a assistir ao drama dos refugiados oriundos de diversos países, também eles vítimas de guerra e de várias perseguições que, num estalar de dedos, desapareceram como se nunca tal calamidade tivesse acontecido. Eis que, de repente, todos nos esquecemos que também esses precisam da nossa ajuda e solidariedade.
E que dizer, por exemplo, daqueles que, lá longe, muito longe, como o povo afegão, que segundo as últimas informações credíveis, nos davam conta de que 9 em cada 10 afegãos, estavam no limiar da fome?!
O Afeganistão é um país que tem as suas principais infraestruturas, como os hospitais, completamente sem meios e/ou recursos para prestar ajuda a quem precisa! Um país, onde algumas pessoas para sobreviverem são obrigados a vender os filhos e os seus próprios órgãos! Um país onde um bando de trogloditas conduz os destinos de um povo a seu bel-prazer, com práticas misóginas e de perseguição política, religiosa e cultural! Não estará também esse povo, a precisar urgentemente da nossa solidariedade?!
Como é possível que, num ápice, nos tenhamos esquecido da solidariedade para com estas pessoas que ainda há tão pouco tempo eram objeto de especial atenção dos órgãos de comunicação social? Também aí nos condoíamos com tamanha injustiça e falta de respeito pela dignidade humana. E agora? O que fazemos? Esquecemos? São enteados da solidariedade?
No continente africano, especialmente nalguns países, também são graves os flagelos sociais e o desrespeito pelos direitos humanos essenciais. E o que sabemos nós desses nossos irmãos? Que ondas de solidariedade são incentivadas? Serão também enteados? Ou estamos à espera de mais alguma catástrofe que se abata sobre eles e seja objeto de voyeurismo mediático?
E que dizer da situação do Iémen onde, segundo informações da ONU News, se registam 17,4 milhões de pessoas que dependem de assistência alimentar e se espera que a curto prazo haja dois milhões de crianças com desnutrição aguda?! Serão enteados da solidariedade?!
A solidariedade não deve ser um espetáculo mediático, onde reina o ruído e o exibicionismo pessoal e social, mas uma atitude discreta, consistente e empenhada em fazer o bem a todos os que precisam da nossa ajuda, seja ela de que natureza for. As práticas de solidariedade estão para além de "ideologias geográficas”, de doutrinas, de ideias, mas também para além da brevidade e exuberância das emoções mediáticas e instantâneas.
A solidariedade não pode eclipsar-se sempre que os holofotes das “televisões” se apagam ou se redirecionam para outras “paragens”, à procura de outros espetáculos que lhe garantam a permanência no pódio das audiências!
O sentido da solidariedade não é compaginável com a brevidade que os órgãos de comunicação social dão, de forma estratégica, aos acontecimentos dramáticos e desumanos, os quais tão depressa são violentamente expostos como, de repente, desaparecem; como se as vítimas que, ainda agora, clamavam pela nossa solidariedade, se tivessem retirado e não precisassem mais de nós.
A sociedade atual é especialmente marcada pela pressa, pela aceleração dos acontecimentos, incapaz de se deter no essencial; incapaz de conclusões; incapaz de soluções complexas para problemas complexos. Tem falta de ser, mas persegue desalmadamente o quantitativo, o ter. E esse caminho afasta-nos da nossa dimensão espiritual, desenraíza-nos das nossas qualidades verdadeiramente humanas, da autêntica solidariedade.
A solidariedade exige que nos foquemos no essencial, que sejamos capazes de fazer a experiência da duração, do acompanhamento e da proximidade (no seu sentido mais amplo) aos que sofrem, desenvolvendo nestes e em nós, não só o sentimento da esperança, como também o fortalecimento da importância da interdependência, do compromisso, da fidelidade, do acolhimento incondicional.
A solidariedade também passa, naturalmente, pela pressão internacional, designadamente por parte dos países que integram a ONU, junto de todos os responsáveis políticos das nações que desprezam e ignoram, ostensivamente, os direitos básicos dos seus concidadãos. É urgente que essa pressão emerja como uma condenação veemente e sem tolerância perante qualquer tipo de prática política que inflija sofrimento gratuito ao ser humano, pondo em causa a sua dignidade.
Jota Eme