INTERCONEXÕES - HIPERCONSUMO, INDIVIDUALISMO E CRISE CLIMÁTICA
Por vezes, no meio do deserto mais ou menos generalizado de ideias nas mais variadas dimensões, eis que somos bafejados pela sorte de ler alguém que rompe, de forma cativante, com os estereótipos, as banalidades, as generalizações infundadas, convidando-nos, simultaneamente, de forma aprazível, a refletir. São experiências que todos deveríamos fazer cada vez mais.
Vem isto a propósito de uma entrevista que recentemente o filósofo francês Gilles Lipovetsky concedeu ao jornal “Público”. Sem ser extensa, considerei-a particularmente profícua, sobretudo do ponto de vista da análise crítica da realidade socioeconómica e cultural da atualidade.
Gilles Lipovetsky é um pensador que ganhou maior notoriedade internacional com o lançamento, na década de 80 do século passado, do livro “A Era do Vazio” que tive, também, o prazer e o privilégio de ler. Um livro que, já nessa época, preanunciava uma sociedade que caminhava a passos largos para o consumismo, o hedonismo e o individualismo. Aliás, o livro viria a ter uma última edição, em 2013.
Mas o que Lipovetsky vaticinava na década de 80 é, hoje, uma realidade insofismável e com contornos mais complexos que o autor volta, agora, a pensar num outro livro intitulado “A Sagração da Autenticidade” (Edições 70, 2022).
Não é propriamente deste último livro que vou “falar”, mas sobretudo, como referi anteriormente, da entrevista concedida ao referido jornal, onde refere, por exemplo, a conferência que dará em Lisboa, sob o tema A Nova Era da Autenticidade.
Lamento não me recordar - apesar de suspeitar - da autoria desta lacunar, mas interessante frase: “O pensamento não é capaz de mudar as coisas, mas nada muda sem ele”. É nesta perspetiva que vejo o significado e alcance da reflexão crítica, do pensamento que ainda se encanta com a interrogação, com a dúvida; que é, enfim, capaz de uma atitude de espanto como uma criança de tenra idade, ou que é capaz, à boa maneira socrática, de assumir a douta ignorância: aquela que ganha expressão no reconhecimento de que não se sabe tudo, mas que, apesar disso, estamos abertos e disponíveis para saber mais, numa perpétua caminhada.
Este prólogo, só até certo ponto desenquadrado do que me trouxe aqui, é apenas mais uma oportunidade para consagrar o pensamento crítico na construção de um mundo, a todos os títulos, melhor; de relembrar, sobretudo aos mais céticos, que a compreensão e transformação do mundo se dá na dialética interativa entre o pensamento e a ação.
Ora, Lipovetsky insere-se no grupo dos pensadores que contribuem, através do seu pensamento, não só para a compreensão do mundo como também para a sua mudança, incluindo a nossa, naturalmente.
Proponho-me fazer, aqui, não só a divulgação do que, para mim, foi o essencial da entrevista, como, também, uma reflexão sobre ela, não adotando, apesar da admiração que nutro por Lipovetsky, uma postura de colagem acrítica ao seu conteúdo. Aliás, tanto quanto possível, aproveitarei para, numa ou noutra situação, fazer outras inferências.
Gilles Lipovetsky aborda, na entrevista, temas da nossa era como o a autenticidade, o hedonismo, o individualismo, o hiperconsumismo, as crises climática e económica, a tecnociência, para referir, talvez, os principais.
É verdade que nem tudo é propriamente novidade: sempre se falou - numas épocas mais do que noutras – nalguns daqueles temas, embora na atualidade ganhem, provavelmente, outra complexidade.
Partamos, por exemplo, da abordagem ao Homo authenticus que, em síntese, se carateriza por uma tendência que privilegia o que é original, genuíno, verdadeiro, natural; por uma atitude que Lipovetsky associa a “frugalidade”.
Todos conhecemos a tendência para se priorizar, no consumo, os produtos biológicos, os que não são o resultado do sacrifício dos animais, mas também o turismo sustentável, entre outras escolhas que, acima de tudo nos deem a garantia de “transparência ética”. E isso é, digamos, uma postura que revela autenticidade! Por outro lado, está, também, associada - por via de determinadas escolhas mais saudáveis - ao contributo para a solução da crise climática.
Para o filósofo francês, a mudança de comportamentos não é, necessariamente, a garantia da solução para a crise climática. Porque, argumenta ele, as “paixões individualistas são mais fortes do que o futuro planetário.” E o autor vai ainda mais longe, dizendo que a solução para a crise climática está na inovação levada a cabo pela tecnociência. Não é suficiente, por isso, a frugalidade. Por mim, aqui, acrescentaria que, além da tecnociência, se exigem mudanças políticas significativas. A tecnociência, por si só, não resolve o problema climático, nem qualquer outro de natureza social ou económica.
Ainda numa linha que não vai propriamente ao encontro do que afirma Lipovetsky, diria que por altura da pandemia da Covid-19, durante o período de confinamento, por força das circunstâncias, a frugalidade revelou-se como um comportamento com impacto em várias dimensões, concretamente na melhoria (ainda que temporária) ambiental. Infelizmente, a frugalidade depressa desapareceu e mergulhámos imediata e sofregamente no hiperconsumo. Assim, conclui-se, que a frugalidade só ganha alguma relevância em circunstâncias que nos são impostas.
A grande mudança, o grande desafio para G. Lipovetsky, nomeadamente em relação à crise climática, passa, então, por transformações mais profundas relacionadas com a inovação científica e tecnológica, ainda que acompanhada pela regulação do Estado e pela “participação de diferentes atores sociais”. Penso que neste último aspeto, estará a reportar-se à necessidade, e bem, de uma ética que previna hipotéticos desvarios.
Lipovetsky assume, aqui, uma perspetiva de confiança e de otimismo em relação ao conhecimento tecnológico e científico contra aqueles que, infundadamente, quase o diabolizam. Aqui, não é difícil concordar com ele.
Avançando, o entrevistado analisa o individualismo e o hiperconsumo, associando-os à crise ambiental que se agudizou na nossa era: “Tivemos de esperar pelos anos 2000 para esta tomada de consciência, com o crescimento da população global. É claro que o hiperconsumo alimenta essa mesma crise; o problema é saber até que ponto podemos travar ou atenuar este aspeto.” Na verdade, não se afigura fácil sermos otimistas. O alerta ambiental já foi dado há muito tempo e, no entanto, os políticos, de forma irresponsável, foram-no ignorando.
Lipovetsky refere-se ao fervor consumista ou o hiperconsumismo que vem, segundo ele, assumindo proporções cada vez maiores e sofrendo alterações. Com efeito, desde a década de 80 até aos nossos dias, vem aumentando não só a necessidade do “prazer constante”, bem como a diversidade dos “consumíveis” e o apetite devorador e insaciável pelo novo, emergindo, assim, uma espécie de “segunda revolução individualista”. E esta, na sua opinião, suscita algumas questões: “… leva-nos necessariamente contra um muro, em direção ao abismo? Ou ainda podemos esperar saídas?”
Já antes disse que a “cultura da autenticidade” está, estranhamente, ligada a um certo tipo de consumo. Ou seja, sou autêntico, na medida em que o meu “consumo ecológico” me dá a sensação de poder de escolha, de poder sobre a minha existência; sou senhor da minha decisão, não estou sujeito ao hype do marketing!
Repare-se que se, em tempos mais recuados do nosso, a autenticidade estava associada a grandes causas da vida e da existência, como a defesa da liberdade, da igualdade, da fraternidade, nos nossos dias, o foco da autenticidade, é o próprio indivíduo na procura de si próprio, sustentada no princípio do be yourself! No entanto, como também refere Lipovetsky, “As pessoas que defendem este consumo ecológico referem que não são individualistas. Dizem que é pelo planeta.”
Interpelado pela entrevistadora, Andréia Soares, sobre o que pensa daquele pensamento, o filósofo disse que pode coexistir o individualismo e a defesa do ambiente, porque, diz ele, “… a aquisição de alimentos e bens de consumo torna-se um ato político. Há um sentido de proteção do ambiente contra o capitalismo predatório. Mas também nesse caso, há uma expressão individualista – é a busca para dar um sentido à minha vida.”
Mais uma vez, da minha parte, acrescentaria que o sentido da vida não se esgota nas escolhas que fazemos para proteger o ambiente. Isso é manifestamente insuficiente e redutor. Se estamos dispostos a procurar um sentido para a nossa vida, ele deve ser objeto de uma busca mais profunda e mais multifacetada (moral, social, ética, política, etc.). Iríamos mais longe e proporíamos – se verdadeiramente buscamos um sentido para a vida – que tivéssemos outras prioridades na nossa orientação existencial, com base, por exemplo, nas perguntas da filosofia kantiana: “o que posso saber”? “o que posso fazer”?, “o que me é permitido esperar”? São questões vitais (referências existenciais) de elevado sentido ético e moral, e que podem ser, nos nossos dias, um contributo decisivo para atribuirmos relevância à nossa existência; para construirmos um sentido, de forma mais sustentada, para a nossa vida; para assumirmos a necessidade vital de uma certa ecologia espiritual.
À pergunta se a “busca por um sentido é uma estratégia para colmatar o vazio”, Lipovetsky responde afirmativamente com a fundamentação de que a “luta ecológica vem preencher o vazio das grandes ideologias…”
Na verdade, indo ao encontro do pensamento do autor, apesar de tudo, a crise económica internacional veio, de algum modo, relegar para segundo plano a causa ecológica. Quer a nível político, quer a nível individual, as prioridades estão relacionadas com as respostas aos problemas económicos imediatos em detrimento de respostas ambientais a médio e a longo prazo. Mesmo sabendo nós que os nossos vindouros (filhos e netos) dependerão das nossas decisões no presente. Diz Gilles Lipovetsky que “A crise económica e energética, combinada com a guerra na Ucrânia e o custo das matérias-primas, não ajuda o projeto ecologista.”
A nível internacional, as diferentes cimeiras sobre o clima continuam a não ter o impacto esperado, uma vez que tem aumentado o ceticismo quanto à possibilidade de evitarmos que o aquecimento global ultrapasse os 1,5 graus Celsius.
Gilles Lipovetsky revela bastantes dúvidas em relação à hipótese de a mudança de comportamentos poder contribuir para a solução da crise climática, enfatizando a necessidade de priorizar outros “recursos” como as novas tecnologias que trazem transformações em vários domínios das nossas vidas: nos transportes, nos sistemas de aquecimento das nossas casas… Acresce, ainda, a importância da investigação, do debate democrático, da democracia participativa, das “soluções inteligentes”. O pensador também não está convencido que existam “soluções à escala planetária”, no sentido da imposição da frugalidade no consumo, uma forma subtil de, segundo ele, desacreditar a ciência; um modo de colocar o ónus da responsabilidade no consumidor.
Sem questionar a pertinência da abordagem de Lipovetsky, penso que o desafio da humanidade passa, cada vez mais, por buscar respostas sistémicas para as diferentes crises que enfrentamos. Ou seja: na minha modesta opinião, não há motivo para se pensar que a “crise económica não é, [como defende Lipovetsky], favorável ao compromisso ambiental”. Numa sociedade hiperconsumista, independentemente de estarmos, ou não, perante uma crise económica, o desafio para a crise climática passa sempre por encontrar uma solução sistémica, ou seja, que implique articulada e concertadamente diferentes vertentes: (i) reduzir a produção de bens supérfluos ou prescindíveis de modo a diminuir o consumo e o impacto negativo no ambiente (como muito bem diz Edgar Morin, “ Temos de substituir a hegemonia da quantidade pela hegemonia da qualidade; a obsessão do mais pela obsessão do melhor”- 2020, 97); (ii) acelerar a transição energética na base de uma cooperação geoestratégica global; (iii) credibilizar e promover o conhecimento científico e tecnológico colocando-os ao serviço de grandes causas como a saúde, o bem-estar das pessoas e dos povos, da justiça e dos direitos humanos em geral; (iv) priorizar o diálogo como estratégia para a resolução dos diferentes conflitos no mundo; (v) estimular a solidariedade entre os diferentes povos e nações para, face a problemas planetários, procurar soluções planetárias; (vi) despartidarizar as questões ambientais e torná-las transversais a todo o espetro político; (vii) apostar numa política que lute contra o curtoprazismo sustentada numa ação cujo objetivo seja o entrelaçamento entre o presente e o futuro; (viii) construir pontes, em vez de muros. De Lipovetsky acrescentaria, ainda, a mudança dos “métodos de produção, avançar para uma economia circular, para a reciclagem de materiais.
A solução para a megacrise climática não passa unicamente pela ciência, ainda que tenha um papel crucial e determinante. É preciso um conjunto de respostas que se entrecruzam: as atitudes e/ou comportamentos dos cidadãos e dos políticos (por exemplo, a frugalidade no consumo e o estabelecimento de prioridades sociais e económicas), bem como o exercício de determinadas competências do Estado e dos organismos transnacionais, nomeadamente, ao nível da regulação dos mercados nacionais e internacionais, e do incentivo a soluções inovadoras (tecnológicas e científicas ou outras), especialmente orientadas para a defesa intransigente do bem comum e de interesse planetário, como o ambiente.
Quando se diz que a “luta climática vem preencher o vazio das grandes ideologias”, isso não deve ser visto como um problema. Pelo contrário: pode ser o contexto ideal para regenerar princípios que saibam acolher, de forma preservante e corajosa, a complexidade do mundo e do homem. Urge, quanto a mim, elevar a “crise planetária” à condição da oportunidade para uma “regeneração permanente” de ideias e de práticas, potenciando o que o Homem tem de melhor, ou seja, a capacidade de buscar soluções éticas e humanistas (reconhecendo que no caminho irá encontrar contradições e vulnerabilidades), na esperança utópica de realização daquilo que Edgar Morin apelidou, sabiamente, de “Humanismo Planetário”.
Jota Eme