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Bricolage da Escrita

Bricolage da Escrita

INTERCONEXÕES - HIPERCONSUMO, INDIVIDUALISMO E CRISE CLIMÁTICA

Por vezes, no meio do deserto mais ou menos generalizado de ideias nas mais variadas dimensões, eis que somos bafejados pela sorte de ler alguém que rompe, de forma cativante, com os estereótipos, as banalidades, as generalizações infundadas, convidando-nos, simultaneamente, de forma aprazível, a refletir. São experiências que todos deveríamos fazer cada vez mais.

Vem isto a propósito de uma entrevista que recentemente o filósofo francês Gilles Lipovetsky concedeu ao jornal “Público”. Sem ser extensa, considerei-a particularmente profícua, sobretudo do ponto de vista da análise crítica da realidade socioeconómica e cultural da atualidade.

Gilles Lipovetsky é um pensador que ganhou maior notoriedade internacional com o lançamento, na década de 80 do século passado, do livro “A Era do Vazio” que tive, também, o prazer e o privilégio de ler. Um livro que, já nessa época, preanunciava uma sociedade que caminhava a passos largos para o consumismo, o hedonismo e o individualismo. Aliás, o livro viria a ter uma última edição, em 2013.

Mas o que Lipovetsky vaticinava na década de 80 é, hoje, uma realidade insofismável e com contornos mais complexos que o autor volta, agora, a pensar num outro livro intitulado “A Sagração da Autenticidade” (Edições 70, 2022).

Não é propriamente deste último livro que vou “falar”, mas sobretudo, como referi anteriormente, da entrevista concedida ao referido jornal, onde refere, por exemplo, a conferência que dará em Lisboa, sob o tema A Nova Era da Autenticidade.  

Lamento não me recordar - apesar de suspeitar - da autoria desta lacunar, mas interessante frase: “O pensamento não é capaz de mudar as coisas, mas nada muda sem ele”. É nesta perspetiva que vejo o significado e alcance da reflexão crítica, do pensamento que ainda se encanta com a interrogação, com a dúvida; que é, enfim, capaz de uma atitude de espanto como uma criança de tenra idade, ou que é capaz, à boa maneira socrática, de assumir a douta ignorância: aquela que ganha expressão no reconhecimento de que não  se sabe tudo, mas que, apesar disso, estamos abertos e disponíveis para saber mais, numa perpétua  caminhada.

Este prólogo, só até certo ponto desenquadrado do que me trouxe aqui, é apenas mais uma oportunidade para consagrar o pensamento crítico na construção de um mundo, a todos os títulos, melhor; de relembrar, sobretudo aos mais céticos, que a compreensão e transformação do mundo se dá na dialética interativa entre o pensamento e a ação.

Ora, Lipovetsky insere-se no grupo dos pensadores que contribuem, através do seu pensamento, não só para a compreensão do mundo como também para a sua mudança, incluindo a nossa, naturalmente.

Proponho-me fazer, aqui, não só a divulgação do que, para mim, foi o essencial da entrevista, como, também, uma reflexão sobre ela, não adotando, apesar da admiração que nutro por Lipovetsky, uma postura de colagem acrítica ao seu conteúdo. Aliás, tanto quanto possível, aproveitarei para, numa ou noutra situação, fazer outras inferências.

Gilles Lipovetsky aborda, na entrevista, temas da nossa era como o a autenticidade, o hedonismo, o individualismo, o hiperconsumismo, as crises climática e económica, a tecnociência, para referir, talvez, os principais.

É verdade que nem tudo é propriamente novidade: sempre se falou - numas épocas mais do que noutras – nalguns daqueles temas, embora na atualidade ganhem, provavelmente, outra complexidade.

Partamos, por exemplo, da abordagem ao Homo authenticus que, em síntese, se carateriza por uma tendência que privilegia o que é original, genuíno, verdadeiro, natural; por uma atitude que Lipovetsky associa a “frugalidade”.

Todos conhecemos a tendência para se priorizar, no consumo, os produtos biológicos, os que não são o resultado do sacrifício dos animais, mas também o turismo sustentável, entre outras escolhas que, acima de tudo nos deem a garantia de “transparência ética”. E isso é, digamos, uma postura que revela autenticidade! Por outro lado, está, também, associada - por via de determinadas escolhas mais saudáveis - ao contributo para a solução da crise climática.

Para o filósofo francês, a mudança de comportamentos não é, necessariamente, a garantia da solução para a crise climática. Porque, argumenta ele, as “paixões individualistas são mais fortes do que o futuro planetário.” E o autor vai ainda mais longe, dizendo que a solução para a crise climática está na inovação levada a cabo pela tecnociência. Não é suficiente, por isso, a frugalidade. Por mim, aqui, acrescentaria que, além da tecnociência, se exigem mudanças políticas significativas. A tecnociência, por si só, não resolve o problema climático, nem qualquer outro de natureza social ou económica.

Ainda numa linha que não vai propriamente ao encontro do que afirma Lipovetsky, diria que por altura da pandemia da Covid-19, durante o período de confinamento, por força das circunstâncias, a frugalidade revelou-se como um comportamento com impacto em várias dimensões, concretamente na melhoria (ainda que temporária) ambiental. Infelizmente, a frugalidade depressa desapareceu e mergulhámos imediata e sofregamente no hiperconsumo. Assim, conclui-se, que a frugalidade só ganha alguma relevância em circunstâncias que nos são impostas.  

A grande mudança, o grande desafio para G. Lipovetsky, nomeadamente em relação à crise climática, passa, então, por transformações mais profundas relacionadas com a inovação científica e tecnológica, ainda que acompanhada pela regulação do Estado e pela “participação de diferentes atores sociais”. Penso que neste último aspeto, estará a reportar-se à necessidade, e bem, de uma ética que previna hipotéticos desvarios.

Lipovetsky assume, aqui, uma perspetiva de confiança e de otimismo em relação ao conhecimento tecnológico e científico contra aqueles que, infundadamente, quase o diabolizam. Aqui, não é difícil concordar com ele.

Avançando, o entrevistado analisa o individualismo e o hiperconsumo, associando-os à crise ambiental que se agudizou na nossa era: “Tivemos de esperar pelos anos 2000 para esta tomada de consciência, com o crescimento da população global. É claro que o hiperconsumo alimenta essa mesma crise; o problema é saber até que ponto podemos travar ou atenuar este aspeto.” Na verdade, não se afigura fácil sermos otimistas. O alerta ambiental já foi dado há muito tempo e, no entanto, os políticos, de forma irresponsável, foram-no ignorando.

Lipovetsky refere-se ao fervor consumista ou o hiperconsumismo que vem, segundo ele, assumindo proporções cada vez maiores e sofrendo alterações. Com efeito, desde a década de 80 até aos nossos dias, vem aumentando não só a necessidade do “prazer constante”, bem como a diversidade dos “consumíveis” e o apetite devorador e insaciável pelo novo, emergindo, assim, uma espécie de “segunda revolução individualista”. E esta, na sua opinião, suscita algumas questões: “… leva-nos necessariamente contra um muro, em direção ao abismo? Ou ainda podemos esperar saídas?”

Já antes disse que a “cultura da autenticidade” está, estranhamente, ligada a um certo tipo de consumo. Ou seja, sou autêntico, na medida em que o meu “consumo ecológico” me dá a sensação de poder de escolha, de poder sobre a minha existência; sou senhor da minha decisão, não estou sujeito ao hype do marketing!

Repare-se que se, em tempos mais recuados do nosso, a autenticidade estava associada a grandes causas da vida e da existência, como a defesa da liberdade, da igualdade, da fraternidade, nos nossos dias, o foco da autenticidade, é o próprio indivíduo na procura de si próprio, sustentada no princípio do be yourself!  No entanto, como também refere Lipovetsky, “As pessoas que defendem este consumo ecológico referem que não são individualistas. Dizem que é pelo planeta.

Interpelado pela entrevistadora, Andréia Soares, sobre o que pensa daquele pensamento, o filósofo disse que pode coexistir o individualismo e a defesa do ambiente, porque, diz ele, “… a aquisição de alimentos e bens de consumo torna-se um ato político. Há um sentido de proteção do ambiente contra o capitalismo predatório. Mas também nesse caso, há uma expressão individualista – é a busca para dar um sentido à minha vida.”

Mais uma vez, da minha parte, acrescentaria que o sentido da vida não se esgota nas escolhas que fazemos para proteger o ambiente. Isso é manifestamente insuficiente e redutor. Se estamos dispostos a procurar um sentido para a nossa vida, ele deve ser objeto de uma busca mais profunda e mais multifacetada (moral, social, ética, política, etc.). Iríamos mais longe e proporíamos – se verdadeiramente buscamos um sentido para a vida – que tivéssemos outras prioridades na nossa orientação existencial, com base, por exemplo, nas perguntas da filosofia kantiana: “o que posso saber”? “o que posso fazer”?, “o que me é permitido esperar”? São questões vitais (referências existenciais) de elevado sentido ético e moral, e que podem ser, nos nossos dias, um contributo decisivo para atribuirmos relevância à nossa existência; para construirmos um sentido, de forma mais sustentada, para a nossa vida; para assumirmos a necessidade vital de uma certa ecologia espiritual.

À pergunta se a “busca por um sentido é uma estratégia para colmatar o vazio”, Lipovetsky responde afirmativamente com a fundamentação de que a “luta ecológica vem preencher o vazio das grandes ideologias…”

Na verdade, indo ao encontro do pensamento do autor, apesar de tudo, a crise económica internacional veio, de algum modo, relegar para segundo plano a causa ecológica. Quer a nível político, quer a nível individual, as prioridades estão relacionadas com as respostas aos problemas económicos imediatos em detrimento de respostas ambientais a médio e a longo prazo. Mesmo sabendo nós que os nossos vindouros (filhos e netos) dependerão das nossas decisões no presente. Diz Gilles Lipovetsky que “A crise económica e energética, combinada com a guerra na Ucrânia e o custo das matérias-primas, não ajuda o projeto ecologista.”

A nível internacional, as diferentes cimeiras sobre o clima continuam a não ter o impacto esperado, uma vez que tem aumentado o ceticismo quanto à possibilidade de evitarmos que o aquecimento global ultrapasse os 1,5 graus Celsius.  

Gilles Lipovetsky revela bastantes dúvidas em relação à hipótese de a mudança de comportamentos poder contribuir para a solução da crise climática, enfatizando a necessidade de priorizar outros “recursos” como as novas tecnologias que trazem transformações em vários domínios das nossas vidas: nos transportes, nos sistemas de aquecimento das nossas casas… Acresce, ainda, a importância da investigação, do debate democrático, da democracia participativa, das “soluções inteligentes”. O pensador também não está convencido que existam “soluções à escala planetária”, no sentido da imposição da frugalidade no consumo, uma forma subtil de, segundo ele, desacreditar a ciência; um modo de colocar o ónus da responsabilidade no consumidor.

Sem questionar a pertinência da abordagem de Lipovetsky, penso que o desafio da humanidade passa, cada vez mais, por buscar respostas sistémicas para as diferentes crises que enfrentamos. Ou seja: na minha modesta opinião, não há motivo para se pensar que a “crise económica não é, [como defende Lipovetsky], favorável ao compromisso ambiental”.  Numa sociedade hiperconsumista, independentemente de estarmos, ou não, perante uma crise económica, o desafio para a crise climática passa sempre por encontrar uma solução sistémica, ou seja, que implique articulada e concertadamente diferentes vertentes:   (i) reduzir a produção de bens supérfluos ou prescindíveis de modo a diminuir o consumo e o impacto negativo no ambiente (como muito bem diz Edgar Morin, “ Temos de substituir a hegemonia da quantidade pela hegemonia da qualidade; a obsessão do mais pela obsessão do melhor”- 2020, 97); (ii) acelerar a transição energética na base de uma cooperação geoestratégica global; (iii) credibilizar e promover o  conhecimento científico e tecnológico colocando-os ao serviço de grandes causas como a saúde, o bem-estar das pessoas e dos povos, da justiça e dos direitos humanos em geral; (iv) priorizar o diálogo como estratégia para a resolução dos diferentes conflitos no mundo; (v) estimular a solidariedade entre os diferentes povos e nações para, face a problemas planetários, procurar  soluções planetárias; (vi)  despartidarizar as questões ambientais e torná-las transversais a todo o espetro político; (vii) apostar numa política que lute contra o curtoprazismo sustentada numa ação cujo objetivo seja o entrelaçamento entre o presente e o futuro; (viii) construir pontes, em vez de muros. De Lipovetsky acrescentaria, ainda, a mudança dos “métodos de produção, avançar para uma economia circular, para a reciclagem de materiais.

A solução para a megacrise climática não passa unicamente pela ciência, ainda que tenha um papel crucial e determinante. É preciso um conjunto de respostas que se entrecruzam: as atitudes e/ou comportamentos dos cidadãos e dos políticos (por exemplo, a frugalidade no consumo e o estabelecimento de prioridades sociais e económicas), bem como o exercício de determinadas competências do Estado e dos organismos transnacionais, nomeadamente, ao nível da regulação dos mercados nacionais e internacionais, e do incentivo a soluções inovadoras (tecnológicas e científicas ou outras), especialmente orientadas para a defesa intransigente do bem comum e de interesse planetário, como o ambiente.  

Quando se diz que a “luta climática vem preencher o vazio das grandes ideologias”, isso não deve ser visto como um problema. Pelo contrário: pode ser o contexto ideal para regenerar princípios que saibam acolher, de forma preservante e corajosa, a complexidade do mundo e do homem. Urge, quanto a mim, elevar a “crise planetária” à condição da oportunidade para uma “regeneração permanente” de ideias e de práticas, potenciando o que o Homem tem de melhor, ou seja, a capacidade de buscar soluções éticas e humanistas (reconhecendo que no caminho irá encontrar contradições e vulnerabilidades), na esperança utópica de realização daquilo que Edgar Morin apelidou, sabiamente, de “Humanismo Planetário”.

 

Jota Eme

 

 

 

 

A DEMOCRACIA COMPLEXA COMO RESPOSTA POLÍTICA AO COMPROMISSO INTERGERACIONAL

Há mais de um ano que adquiri o livro do filósofo espanhol Daniel Innerarity (reconhecido como um dos principais pensadores mundiais), intitulado Uma Teoria da Democracia Complexa, publicado pela editora Ideias de Ler, em 2021.

Já na altura, quando concluí a primeira leitura, confesso que fiquei especialmente agradado com a abordagem que o autor faz sobre a emergência daquilo que o mesmo designa de “democracia complexa”. Esta é, segundo o autor, uma perspetiva de democracia mais consentânea com os desafios atuais e futuros. Trata-se, pois, de uma conceção de democracia focada na “repolitização do futuro” ou, se se preferir, no “entrelaçamento entre o presente e o futuro”.

Na verdade, o conteúdo exerceu sobre mim um certo fascínio/curiosidade, ao ponto de me levar a prometer a mim mesmo que haveria de fazer uma segunda leitura, na esperança de apreender melhor o significado e alcance da(s) proposta(s) do autor sobre a “democracia complexa”. Aliás, estou plenamente convicto de que a leitura atenta deste livro poderia ser também de particular relevância pedagógica para todos aqueles que desempenham cargos e/ou funções de responsabilidade política.

O livro não esteve, infelizmente, no TOP de vendas, não foi propriamente um best-seller, mas, pela pertinência do contributo que pode dar na formação de cidadãos esclarecidos e mais ativos, merecia uma divulgação bem maior.

A “democracia complexa”, não é sinónimo, naturalmente, de complicado.

Antes de adentramos propriamente no domínio da democracia complexa, talvez se revele de alguma utilidade convocarmos aqui Edgar Morin, sociólogo e filósofo francês sobejamente conhecido. Já agora, uma curiosidade: Morin vai a caminho dos seus 102 anos de idade! Ele foi (é), provavelmente, um dos grandes precursores da “complexidade”, no sentido da valoração das interdependências, das conexões, das múltiplas interações, como a melhor abordagem para a inteligibilidade e compreensão da realidade. Para Edgar Morin, o conhecimento da realidade não é compaginável com visões simplistas, com a adoção de fronteiras e/ou perspetivas disciplinares estanques, com a construção de muros entre os diferentes ramos do saber.

O pensamento complexo deve ser entendido como uma mensagem de esperança na construção de um mundo melhor; não confinado a visões maniqueístas, reducionistas, populistas e “separatistas”. O paradigma da complexidade em Morin, é um desafio para a construção permanente do humanismo que, entre outras diferenças, pressupõe o reconhecimento e aceitação da diversidade e da unidade humanas, onde se reconhece a complexidade humana (homo complexus) com as suas vulnerabilidades e potencialidades.

Para Edgar Morin, a realidade não se deixa agrilhoar a interpretações fragmentadas, simplificadas e/ou especializadas. Daí que se atribua a este filósofo a autoria da teoria da complexidade, ou seja, de uma outra conceção de conhecimento, que está inevitável e indissociavelmente ligada a outra perspetiva de compreensão da vida e do mundo.

O pensamento complexo em Edgar Morim é transversal a várias das suas obras, incluindo numa das últimas, publicada em França, sob o título original “Changeons de Voie”, de 2020, pouco depois da pandemia, e editado, mais tarde, em Portugal, pelas Edições Piaget. Também no seu livro mais recente, "Leçons d`une siècle de vie", de 2021, continua bem vivo o paradigma da complexidade como via privilegiada de compreensão, de interpretação e de transformação do mundo.

Ora, a conceção do conhecimento sustentada no paradigma da complexidade trará impactos em vários domínios como o da educação e da política, por exemplo.

Depois desta sumaríssima incursão na teoria da complexidade em Edgar Morin, voltemos, então, à denominada democracia da complexidade em Daniel Innerarity.

O princípio da complexidade, concretamente em Daniel Innerarity, deve, pois, ser visto como a forma mais adequada de pensar e de atuar no mundo que nos rodeia; ser assumido como a melhor via de gerir o inesperado, as incertezas, recusando as explicações simplistas e isolacionistas.

Para Daniel Innerarity, a sociedade não pode ser governada por uma democracia sustentada em respostas pretensiosamente únicas, simples, definitivas, arrumadinhas em slogans, face a problemas que se afiguram, pelas suas múltiplas interações/dimensões, mas também pelos seus impactos no futuro, essencialmente complexos. É uma mensagem bem pertinente num mundo onde, infelizmente, crescem os extremismos políticos.

A visão simplista da realidade é apanágio, justamente, de visões políticas extremistas (de direita, de esquerda e/ou de seitas/religiões radicais), que não sabem acolher a diversidade, onde impera a pretensão das certezas, da verdade suprema, do simplismo eivado de pseudossoluções, da arrogância e da ignorância disfarçadas de explicações imediatas e únicas. O problema é que essas visões têm, especialmente nalgumas latitudes geográficas, cada vez mais seguidores.

As evidências, no entanto, mostram-nos um mundo, acima de tudo, complexo, exigindo uma abordagem complexa e não a adesão e vassalagem a visões dogmáticas e absolutas, como tantos (em diferentes contextos) fazem em relação a vários domínios da realidade.  Seria fácil, nesse âmbito, recolher, aqui, vários exemplos concretos. Talvez numa próxima oportunidade.

Vejamos como Innerarity se reporta à nossa sociedade: “A sociedade é complexa pelo aspeto que nos oferece (heterogeneidade, discordância, caos, desordem, diferença, ambivalência, fragmentação, dispersão), pela sensação que produz ( intransparência, incerteza, insegurança) por aquilo que se pode ou não fazer com ela (ingovernabilidade, inabarcabilidade)” ( 2021, 25).  

Face a uma sociedade complexa como a nossa, a melhor resposta política só pode ser uma democracia complexa. Por outras palavras, democracia e complexidade correlacionam-se e interpenetram-se.

Como já foi anteriormente referido, a democracia complexa é uma forma de pensar e de atuar sobre o mundo que nos rodeia, rejeitando a comodidade do que julgamos saber, e tendo a ousadia de nos abrir a outras formas de conhecer, a outras formas de nos relacionarmos com a realidade, como se estivéssemos disponíveis para aceitar o assédio do desconhecido. Sim, porque nada é definitivo. Mais: ninguém pode ter a pretensão, pela fragilidade, falibilidade e finitude inerentes à natureza humana, de conhecer a verdade absoluta.

Segundo Innerarity, vivemos num mundo “enigmático”, mais “inabarcável” e mais “volátil”, até porque, diz ele, “A distribuição do poder é mais volátil, a determinação das causas e das responsabilidades é mais complexa, os interlocutores são instáveis, as presenças são virtuais e os inimigos difusos […] (2021, 119). E, um pouco à frente, completa: “A democracia é um espaço de dúvida, de conflito e de invenção imprevisível. O poder não pertence a ninguém; é um lugar vazio ocupado provisoriamente” (2021, 120).

Com efeito, na democracia complexa, o poder está, por diferentes vias, submetido a uma supervisão permanente e não é detido por ninguém em especial, ou por uma entidade e/ou organização específica. Aliás, especialmente na europa, o poder ganha, inclusive, a dimensão transnacional!  Na democracia complexa também não há imposição de um saber único e absoluto, antes se pauta pelo acolhimento de vários saberes, pelas opiniões contraditórias, por alternativas múltiplas, pela aceitação das críticas e por posições e/ou opiniões contestatárias.

O cidadão da democracia complexa, apesar de imerso num mundo de incerteza, de dúvida, é aquele que está em melhores condições para estar aberto à discussão, disponível para, genuinamente, compreender e, simultaneamente, questionar diferentes perspetivas da vida e do mundo.

Consciente da importância da imprevisibilidade nas nossas vidas, o cidadão na democracia complexa, está também aberto a compromissos sustentados nas interdependências e nas interações, recusando a subserviência a visões simplistas e redutoras, normalmente geradoras de fundamentalismos, extremismos, e de políticas socioeconómicas e culturais promotoras da mentira e da exclusão.   

Pela sua complexidade, a sociedade atual exige cidadãos e responsáveis políticos que reflitam e atuem numa lógica não confinada ao curtoprazismo ou em função de ciclos eleitorais, mas abertos a uma dimensão temporal mais abrangente, mais duradoira, numa palavra, mais comprometidos com o futuro, com práticas e dinâmicas mais consentâneas com a “democracia intergeracional”.

Reconhecer a existência de um “bem comum intergeracional e universal” é um desafio que nos pode libertar da “tirania” do presente, bem como levar-nos a considerar a inadiabilidade da tomada de decisões que protejam os interesses e direitos das gerações vindouras, aquilo que Goodin, citado por D. Innerarity, designou, tão sabiamente, de “interesses mudos”! Trata-se de uma espécie de empatia geracional, ou seja, de uma capacidade de nos colocarmos no lugar de quem virá a seguir a nós e que não deve ser vítima da nossa incapacidade de “ampliar o horizonte temporal”.

O futuro não pode ser perspetivado ou ignorado como se fosse apenas a “lixeira do presente”, como se quiséssemos, egoisticamente, deixar para os nossos vindouros os problemas que, por comodismo, não conseguimos resolver (ambientais, nucleares, políticos, culturais, financeiros, sociais, entre outros). E de forma que considero exímia, diz ainda, a propósito, Daniel Innerarity: “Há uma espécie de impunidade no âmbito temporal do futuro, um consumo irresponsável do tempo ou uma expropriação do futuro dos outros. Somos “okupas” do futuro” (2021, 260).

Na era da inteligência artificial, do conhecimento científico e tecnológico aumenta, exponencialmente, a capacidade e a responsabilidade de antecipar (pelo menos, em parte), o futuro (partilhado). Daí que também seja legítimo que assumamos o dever de acautelar, de forma vinculativa, os bens comuns transnacionais e, simultaneamente, os direitos das futuras gerações.   Certamente que não se afigura uma tarefa fácil, até porque como diz D. Innerarity, “O paradoxo do respeito intergeracional poderia ser formulado deste modo: temos de tomar agora determinadas decisões para que eles tenham depois liberdade de escolher” (2021, 267).

A democracia da complexidade no seu compromisso com a interpenetração geracional exige uma mudança de paradigma cultural. Com efeito, a democracia complexa deve ser vista como uma forma de pensamento, mas também como via de atuação ecológica, “menos antropocêntrica e mais biocêntrica” e, por via disso, parafraseando Innerarity, deixar-se contaminar pelas dimensões global, transfronteiriça e cooperativa (2021, 277).

O foco é, na democracia complexa, a interdependência global, quer no diagnóstico dos problemas, na partilha das “vulnerabilidades”, quer na procura de soluções e na prestação de “solidariedades” para o presente e para o futuro (e.g. fluxos migratórios).

Apesar dos avanços do conhecimento, a verdade é que, paradoxalmente, o mundo é assolado por acontecimentos mais ou menos inesperados para os quais não está, pelos menos de forma imediata, habilitado a responder eficazmente (e.g. a pandemia da Covid-19). Por outras palavras, “a política precisa de aprender a tomar decisões com conhecimento incompleto, em ambientes de incerteza” (2021, 317). A par disso, a complexidade dos problemas atuais exige o desenvolvimento de uma “inteligência cooperativa” e a capacidade de fazer abordagens holísticas e de tomar decisões sistémicas. Como refere Innerarity, “Temos uma grande capacitação tecnológica no que respeita a problemas concretos, mas muito pouca no que se refere a problemas complexos e interligados” (2021, 317). Esta situação é bem evidente nalguns acontecimentos que acontecem a nível nacional e internacional.  E a inteligência artificial, ao que parece, neste âmbito, não tem sido uma mais-valia.

Cada vez mais os sistemas políticos se veem confrontados com o desafio da “gestão coletiva da incerteza”! Mas isso significa que desapareceram os desafios tradicionais da igualdade, da ordem, da justiça?! Não. Só que esses desafios passam, agora, pela “identificação e gestão de certos riscos que não conhecemos bem” (2021, 320).

A visão política sustentada no princípio da complexidade, privilegia, como é desejável, o entrelaçamento intergeracional, apelando a uma estratégia antecipatória consubstanciada numa ação orientada para um horizonte temporal para além do curtoprazismo; sem a obsessão, portanto, dos cálculos utilitaristas imediatos e de oportunismos partidarizados, pessoais e corporativistas.

Os governos têm de mudar/alterar as suas práticas e/ou procedimentos em ordem a responder a cenários de instabilidade crescente e, consequentemente, empenhados em aperfeiçoar a sua capacidade de gerir o inesperado; aprender, digamos assim, a conviver com o futuro; tem de aumentar continuamente, como dissemos anteriormente, o conhecimento (sempre incompleto) a fim de tomar decisões mais informadas num mundo  de incerteza(s). 

Por outro lado, o poder difuso, a dissolução de hierarquias rígidas, a ausência de princípios únicos de explicação da realidade, a relatividade ética e cultural, entre outras contingências e/ou indefinições de natureza social e política, o caos em que vivemos em detrimento da ordem, têm gerado dificuldades na apreensão e compreensão da realidade e no entendimento de algumas decisões políticas, condicionando o exercício da vigilância crítica, enquanto cidadãos ativos e participativos.

Ora, esta dificuldade desenvolve um sentimento de frustração e de impotência, espoletando uma cultura tendente a privilegiar a homogeneidade, o fanatismo, o unanimismo, a discriminação, a perseguição à pluralidade de opiniões, levando a opções e a decisões eivadas de cegueira e de estupidez. Numa sociedade da era do saber digital, científico e tecnológico, os riscos de uma “estupidez coletiva” são, assim, paradoxalmente, elevados.

Também é verdade que quando mais difícil se torna a inteligibilidade das decisões políticas sobre os assuntos que são do interesse de todos nós (desde a saúde, passando pela justiça, pela educação, pela transição digital, pelas questões ambientais, etc.), mais hercúlea se torna a tarefa de exercermos o direito de as supervisionar. Mas isso faz parte de um outro desafio:  aprender a “saber viver” num mundo complexo, onde também estão incluídos, naturalmente, fenómenos como a “infodemia” ou excesso de informação, a “teatrocracia”, sem, contudo, cairmos na tentação de nos deixarmos instrumentalizar ou arrastar pela sedução das políticas extremistas, rejeitando o mundo categorizado, estereotipado, preconceituoso.

 

Jota Eme

 

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