NÃO AO GLAMOUR DA SUPERFICIALIDADE
Miguel Sousa Tavares, há pouco tempo, num artigo seu, no jornal Expresso, sem meias palavras, caraterizava, na essência, na minha opinião, o Chega, o partido da extrema-direita em Portugal.
Dizia, então, aquele jornalista, que o “Crescimento contínuo do Chega é […] obra de um homem só, pois à roda dele não existe nada nem ninguém, apenas uma plateia de rostos sem expressão ou alguns com a inconfundível marca da inveja dos medíocres estampada na cara, quando não menos indisfarçáveis sinais de perturbação mental por tratar. Se algum dia aquela gente chegar ao poder, o espetáculo será assustador e o resultado uma espécie de solução final.”
Antes de prosseguir, uma pequena ressalva: não estou filiado em nenhum partido. Incluo-me, apenas, no grupo de pessoas que, acima de tudo, se identificam com o “partido” que defende e prioriza o bem comum. Procuro ter o cuidado de, perante o espetro político existente, escolher o que, apesar de tudo, está mais próximo de prosseguir na senda daquele desiderato. Difícil? Sim, talvez! Incompreensível é, no entanto, não tomarmos opções, ou encolhermo-nos no facilitismo e na aberrante esperança de que os outros escolham por nós; delegarmos nos outros aquilo que deveríamos ser nós a fazer! Esse é um dos motivos que contribui para escancarar as portas às ideologias extremistas. A par disso, a própria crise da democracia, que mais parece, parafraseando Byung-Chul Han, uma “teatrocracia”, também tem facilitado o caminho a posições políticas populistas e radicais.
Há três anos, mais ou menos, neste blogue, escrevi que os motivos do aparecimento dos “messias populistas” são da nossa inteira e exclusiva responsabilidade; resultam da nossa demissão em, de forma regular, monitorizar criticamente a ação política; da carência de uma oposição política interventiva e intencionalmente construtiva; da partidarização das soluções, em vez de consensos alargados em prol do bem comum. Mais do que girar em torno do Ventura, é imperioso que todas as forças políticas democráticas, através de uma séria e honesta autocritica permanentes, se tornem, aos olhos dos cidadãos, cada vez mais, como opções verdadeiramente credíveis. Esse pode ser um dos caminhos para diminuir a abstenção e travar o avanço dos extremismos. Infelizmente, desde essa altura, que nada ou pouco mudou.
Voltando, agora, ao que disse Miguel S. Tavares. No essencial, não poderia deixar de concordar com ele. Temos o dever de impedir, pelo menos através do voto, a possibilidade desta gente da direita populista atingir o seu único objetivo: o poder político.
O Chega é, penso eu, uma pseudosolução política; é um partido que, como já dissemos, persegue única e exclusivamente um objetivo: atingir o poder. Para o efeito, recorre a propostas simplistas, numa lógica pateticamente solucionista, a qual, pelo menos à primeira vista, seduz a “multidão” conformista.
O Chega segue a lógica, para utilizar uma expressão de Pacheco Pereira, do “glamour da superficialidade”, que grassa, em geral, na nossa sociedade, caracterizado, essencialmente, pela ausência de um pensamento crítico, pelo conformismo, pela falta de paciência em tentar distinguir o essencial do acessório e, até, o que é ainda mais grave, pelo indiferentismo cívico. Comportamo-nos, frequentemente, como desertores da cidadania responsável e de compromisso connosco e com os outros. “O que nos faz mal [diz Marco Aurélio], é persistir na autoilusão e na ignorância” (in Meditações, 2017, p.72).
Distraídos, preferimos abdicar da nossa natureza pensante, delegar nos outros a capacidade de pensar e de decidir por nós. No caso do Chega, deixamo-nos seduzir por um tipo de discurso que mais não é do que uma encenação, a maior parte das vezes, sem qualquer qualidade, irracional e sem qualquer respeito pela verdade.
Empoderamos os outros (e quase sempre os piores) do privilégio de decidir sobre as nossas vidas e os nossos problemas, numa postura de absoluta e cega credulidade. Aliás, como alguém muito bem dizia, é aos distraídos, aos crédulos apáticos, que devemos atribuir a responsabilidade histórica pelo surgimento do nazismo como uma força política de consequências inimagináveis, a nível mundial, e sobejamente conhecidas.
É imperioso que assumamos a incredulidade entendida como o exercício de uma cidadania ativa, informada e capaz de resistir e combater aqueles que glorificam soluções imediatas e simplistas para problemas complexos, os que nos anunciam cenários apocalíticos para, através do medo, condicionarem a nossa capacidade de pensar serenamente.
A extrema-direita, onde se insere o Chega, assenta numa ideologia autoritária, e na tendência para uma visão “retrópica” do mundo, ou seja, por um especial fascínio por ideais anacrónicos, pelo “pré-moderno”, consubstanciado na máxima de que “antigamente é que era bom”, contra, portanto, qualquer ideia do conhecimento como um processo em evolução. Naquele partido, tudo ecoa como artificial.
Entretidos com o supérfluo, enternecidos com os nossos afazeres, interesses e privilégios pessoais, sempre ansiosos e inquietos com o que o futuro nos poderá reservar, fomos abdicando, enquanto humanos, de fazer do saber, do conhecimento em geral, uma oportunidade para nos tornarmos melhores. Marina Garcés traduz, de forma mais rigorosa, esta ideia: “ [...] já não equacionamos tornarmo-nos melhores, mas tão-só obter mais ou menos privilégios, num tempo que não leva a lado nenhum, porque renunciou a direcionar-se para um futuro melhor” (2023, p.12).
Empanturrados de informação, só nos interessa a “salvação” curtoprazista, imediatista, numa clara subserviência voluntária à chamada cultura da pós-verdade: a tendência para se acreditar apenas naquilo que mais convém a cada um; como se costuma dizer, na tendência para acreditar apenas no que a cada um de nós dá mais jeito num determinado momento.
É justamente num quadro de servidão voluntária, de uma cultura da credulidade amorfa e de mentalidade acrítica, que o Chega e outras ideologias do género, encontram o terreno fértil para atuarem. Da atuação dos representantes das políticas extremistas, faz parte a “venda” da catástrofe, da calamidade, do caos, para, cinicamente, apresentarem as suas propostas salvíficas.
Perante a cultura dominante da credulidade, e face à impotência para a combater, sobretudo devido ao que a filósofa espanhola, Marina Garcés, designou de “analfabetismo ilustrado” (“sabemos tudo, mas não podemos nada”), impõe-se, segunda ela, uma ação sustentada no “iluminismo radical” (2023, p. 13).
O “novo iluminismo radical”, que, inclusivamente, dá o título ao pequeno, mas extraordinário ensaio da filósofa, remete, justamente, para a crítica que consiste na “autonomia do pensamento, mas não na autossuficiência da razão […] A crítica é uma arte dos limites que nos devolve a autonomia e a soberania” (2023, p. 48).
A autora alerta-nos, também, para os principais perigos que hoje, apesar da abundância da informação, criam obstáculos ao exercício da crítica, designados por ela de “mecanismos de neutralização da crítica”, destacando quatro: “a saturação da atenção, a segmentação de públicos, a uniformização das linguagens e a hegemonia do solucionismo” (2023, p.61). Nesse âmbito, Byung-Chul Han, também pode ajudar a entender a dificuldade que, nos nossos dias, todos temos em “exercitar” o espírito crítico, quando se refere a uma “doença da sociedade da comunicação” a que dá o nome de “Síndroma da Fadiga da Informação (SFI). Um dos sintomas é [continua Byung] a paralisia da capacidade analítica. No meio do dilúvio da informação, parece que já não se consegue distinguir o essencial do não - essencial” (in Capitalismo e Pulsão da Morte, 2023, p. 93).
O novo iluminismo pretende resgatar a dimensão do saber, do conhecimento, como oportunidade de emancipação, de nos tornarmos melhores (honestos, generosos, solidários, autênticos, cooperantes, empáticos, humildes…).
Para os pensadores da antiguidade grega, a verdadeira sabedoria consistia no exercício do pensamento crítico. Pensar criticamente significa agir em conformidade com o bem; significa tornarmo-nos melhores num sentido multidimensional. Trazendo à colação, uma vez mais, Marco Aurélio, “É a cortesia e a bondade que definem o ser humano – e um homem” (2017, p. 149). E a construção do homem só se torna viável através de cidadãos críticos, esclarecidos e responsáveis.
Assumindo a experiência do novo iluminismo radical, o ser humano afirma a sua liberdade e dignidade, não delegando nos outros o poder que, em cada um de nós, é único e intransmissível: o de pensar por si mesmo. Nisso consiste a emancipação de cada um; é por essa via que podemos tornar-nos melhores e radicalmente livres, timoneiros de nós próprios. É desta maravilhosa e inalienável capacidade natural de pensar por nós próprios, que o poder político (sobretudo, um determinado tipo), nos quer privar, condicionado a nossa autonomia, limitando a nossa experiência de liberdade.
Todas as estratégias, sob a égide do glamour da superficialidade, servem para o poder nos desmobilizar do pensamento próprio, da nossa afirmação como seres autónomos e livres: “ridicularizar a capacidade de nos autoeducarmos para construirmos em conjunto, um mundo mais habitável e mais justo. Propõem-nos todo o tipo de gadgets para a salvação: tecnologia e discurso a la carte. Líderes e bandeiras. Siglas. Bombas. Embarcam-nos em projetos de inteligência delegada, nos quais, finalmente, poderemos ser tão estúpidos como os humanos demonstraram ser, porque o mundo e os seus dirigentes serão inteligentes por nós. Um mundo smart para habitantes irremediavelmente idiotas” (2023, p. 15). Palavras, infelizmente, certeiras e, simultaneamente, angustiantes.
Esta patologia crescente sustentada na ilusória convicção de que os outros, a par, agora, da confiança desmedida na Inteligência Artificial (IA), nos podem substituir, em quase tudo, vai minando, sem nos apercebermos, a nossa essência, a nossa dignidade, a nossa experiência enquanto seres capazes de pensar o que é melhor para nós, para os outros e para o mundo. “Se alguém [pergunta Epicteto] entregar algo que é teu a qualquer desconhecido que vá a passar na rua, ficarás, certamente, furioso. Então, porque delegas a tua capacidade de pensar…?” (in Pequeno Manual para a Vida, 2017.p.40). A nossa capacidade de pensar não é, pois, delegável, sob pena de perdermos a nossa autonomia, a nossa dignidade, a nossa liberdade.
Para terminar, e ainda em relação ao Chega, diríamos que este não é, definitivamente, uma mais-valia para o país. Se alguma vantagem tem, é alertar-nos para a urgência de robustecer a democracia, em dimensões como a igualdade social, a saúde, a justiça, a educação, o ambiente, a integração dos imigrantes, entre outras; serve para os democratas fazerem a sua autocrítica e promoverem uma ação política que responda aos legítimos anseios das pessoas, aos seus problemas reais, garantindo a defesa e a promoção dos seus direitos fundamentais, e onde impere a transparência e a escuta ativa dos cidadãos.
Jota Eme