UM OLHAR HUMANISTA E HOSPITALEIRO SOBRE OS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS
Talvez sem grande surpresa, as notícias e reflexões que tenho lido ou ouvido em torno dos movimentos migratórios tendem, em geral, para uma abordagem de pendor economicista e/ou utilitarista. Como quando, por exemplo, se escreve: “Há áreas de economia onde mais de 40% dos trabalhadores são estrangeiros. Os empregadores já os vão buscar diretamente lá fora e admitem que, sem imigração, muitas atividades não sobrevivem. Lares, limpezas, pesca, agricultura, construção civil, entregas ou transportes são só alguns exemplos” (Jornal Expresso, 02.02.2024).
Ou, ainda: “… os imigrantes passaram a assumir um papel vital na economia portuguesa, integrando-se em atividades essenciais que sustentam o quotidiano português” (Fernando Morais, in Jornal Expresso, 08 de março de 2024).
Admitimos, naturalmente, que em países envelhecidos como é, por exemplo, o caso de Portugal, os imigrantes possam constituir um recurso importante para a economia do país e, consequentemente, uma mais-valia para o seu crescimento e para o bem-estar dos nativos.
Uma avaliação de natureza holística exige que vejamos os imigrantes, acima de tudo, como seres humanos, reconhecendo-lhe direitos e deveres. A sua integração no país escolheram para viver, não depende apenas da atribuição de um trabalho, por vezes precário e, em geral, desdenhado pelos nativos, mas da criação de condições sociais, educacionais, de saúde e jurídicas que formos capazes de lhes proporcionar.
Devemos ver os imigrantes, não como bárbaros à maneira da civilização da antiga Roma (como selvagens, incivilizados), e como, ainda hoje, nas ideologias xenófobas, mas como pessoas que esperam de nós uma atitude hospitaleira.
Afinal, as pessoas, salvo algumas exceções de que falaremos adiante, procuram melhorar a sua vida e dos seus familiares, fugindo, a vários tipos de perseguições (religiosas, políticas, étnicas), ou por outros motivos, designadamente, guerras ou vítimas das alterações climáticas. Hoje, começa, inclusivamente, a ganhar corpo o estatuto internacional de “refugiado climático”.
Pela sua exposição a diferentes vulnerabilidades, os imigrantes merecem, da nossa parte, compreensão e empatia, e não, como dissemos anteriormente, uma abordagem meramente economicista e utilitarista. Sermos capazes de nos colocar no lugar deles, é crescermos também como pessoas; é compreender que poderíamos ser nós a precisar da sua ajuda; é admitir que um dia, quem sabe, poderemos estar em situação de vulnerabilidade idêntica. Não admitir esta possibilidade é demonstrativo de uma atitude de arrogância, de sobranceria e de ignorância.
Quando, na comunicação social em geral, se escreve ou discute a imigração, quase sempre este fenómeno é relacionado como importante para mitigar o envelhecimento da população dos países de destino, designadamente dos do continente europeu: “Um quarto dos bebés nascidos em 2022 são filhos de mãe estrangeira”, assim é escrito o título no jornal Público (10.03.2024). É assumida, desta forma, a importância dos imigrantes para ajudar a mitigar o envelhecimento da população portuguesa (na verdade, 25% dos portugueses têm mais de 65 anos).
Continuamos, como se advinha do que já se disse anteriormente, a assistir uma perspetiva reducionista sobre os imigrantes. Não é de estranhar. O binómio produção/consumo, continua a assumir a primazia nas diferentes abordagens da realidade. É uma característica insofismável da era da globalização de cariz essencialmente economicista.
Excluindo aqueles que, por motivos criminais, ou com objetivos de tráfico, nomeadamente de estupefacientes e de humanos, ou por outros motivos duvidosos, todos os imigrantes deveriam ser acolhidos e devidamente integrados, aprendendo nós a vê-los, em primeiro lugar, como pessoas, ou seja, dotados de direitos e de deveres.
O discurso político, geralmente com origem na extrema-direita, que, de forma simplista e redutora, se insurge contra os imigrantes, requer sempre, da nossa parte, uma análise cuidada e/ou ponderada, de modo a não termos receios infundados, como o da perda de emprego dos nativos e/ou o aumento da violência e do crime. Pelos estudos que conheço, não existe, neste particular, uma relação causal. Quanto à questão do emprego, de um modo geral, os imigrantes (na sua maioria, talvez) desempenham tarefas que, normalmente, são recusadas pelos nativos dos diferentes países. Dirão alguns que o motivo se prende com o facto de serem tarefas mal remuneradas. Pelo menos no caso de Portugal, talvez seja assim. No entanto, o que verdadeiramente interessa é, como alguém dizia, melhorar as relações de trabalho tanto para os imigrantes como para os trabalhadores portugueses ou de outras nacionalidades.
O que devemos interiorizar é a ideia de que responsabilizar a imigração pelos males de uma determinada sociedade é sempre uma ideia perigosa e reveladora da falta de empatia e de respeito pelo diferente. É também a manifestação de sentimentos xenófobos, nacionalistas, regionalistas e racistas. Outras vezes, os imigrantes são, por parte das ideologias extremistas, pretexto para incutir medo nas pessoas, a fim de atingirem, dessa forma, o poder(político).
Num mundo global, onde deveria imperar uma visão de interdependência, sem nacionalismos bacocos, ostenta-se a divisão, luta-se com uma violência inaudita pela (re)definição de fronteiras, num claro ato de pura irracionalidade fratricida. Infelizmente, temos tendência para não compreender que, como sabiamente diz Byung-Chul Han, “[…] Sem o estrangeiro, somos cegos para o que nos é próprio” (2023, p. 73). Uma máxima que deveria nortear qualquer ideia ou ação de inclusão.
Eu diria que para um homem autenticamente humanista, todos os lugares podem ser o seu país, o seu abrigo. Se esta convicção fosse generalizada e se tornasse “norma” talvez, como Kant almejava, pudéssemos ficar mais perto do ideal da “paz perpétua”, consubstanciada, em termos simples, numa comunidade de cidadãos do mundo seriamente comprometida pelo respeito, na prática, dos princípios e direitos universais.
Os migrantes (em qualquer país) não poderão ser bem acolhidos se se persistir numa globalização marcadamente económica em detrimento de uma globalização humanista e hospitaleira. Não resisto a trazer aqui Byung-Chul Han, quando, neste âmbito, escreve: “A globalização que torna tudo igual, que equivale a uma monetarização total do mundo rouba-nos significado e orientação […] Expulsa-se tudo que é estranho. A singularidade do outro perturba o global, que não quer saber de nós (2023, p.72).
A legislação dos países, nomeadamente europeus, deve criar exigências legais aos empregadores, a fim de impedir que os imigrantes não sejam apenas vistos como uma oportunidade de mão de obra barata, a quem não são garantidos quaisquer direitos, como a saúde e a habitação condigna, entre outros.
Os países devem, ainda, ter políticas e legislação concertada que impeçam, como já se disse, a exploração dos imigrantes por parte dos empregadores, mas também por determinados gangs, que mais não fazem do que traficar humanos condenando-os, também por essa via, a condições miseráveis.
A boa integração dos imigrantes reclama, por parte dos cidadãos de cada país de acolhimento, atitudes de abertura, de tolerância, de humanismo, de inclusão, de hospitalidade. O recurso a Immanuel Kant por parte de Byung-Chul Han, pode levar-nos a compreender ainda melhor a nossa ideia, quando remete para a chamada “hospitalidade universal”, o que significa tratar os imigrantes (ou refugiados) não como bárbaros, mas como convidados, sem recurso, portanto, à irracionalidade da lógica calculista, economicista e da arrogância cultural.
Se pensarmos um pouco, dar-nos-emos facilmente conta de que, por parte de quem se insurge contra a imigração, há uma contradição. Basta pensar que, no caso concreto de Portugal, há 26% da população do país que está emigrada, ocupando o oitavo lugar dos países do mundo com mais emigrantes.
Intuímos, assim, que, alguns dos que contestam a imigração terão alguém (vizinho, amigo, conhecido, familiar) que estará emigrado. Pergunta-se: aceitariam que estes fossem maltratados, perseguidos ou discriminados. O bom senso diz-nos que não, naturalmente.
Partilho, inteiramente, das premissas defendidas pelo filósofo Byung-Chul Han (também ele, um sul coreano, que emigrou para a Alemanha), a propósito dos imigrantes: “Quem for um bom cidadão no país de origem também será um bom cidadão no novo país […] Quem já era um criminoso no país de origem […] continuará a ser um criminoso no novo país. Expulsá-lo-emos” (2023, p. 68). E o que é um bom cidadão, perguntar-se-á. Basicamente, a resposta é tão simples como no-la dá o mesmo pensador: “Um bom cidadão é-o por convicção. Partilha valores morais como a liberdade, a fraternidade e a justiça […] e também um patriota, alguém que ama o país e a humanidade” (2023, p. 69). Mais do que imigrantes, estes são, em qualquer lugar, cidadãos, pessoas.
Por fim, reiteraria que não é a necessidade de acolher imigrantes que é uma questão relevante, uma vez que a sua importância, pelas mais diversas razões (não só de natureza económica) é inquestionável. O problema são as políticas de acolhimento ou, melhor dizendo, a falta delas. São necessários processos e/ou mecanismos que agilizem e facilitem a integração das pessoas que querem trabalhar no nosso país, exigindo-lhe o cumprimento de deveres, designadamente fiscais, e acautelando, naturalmente, os seus direitos. Simultaneamente, deverão ser criados mecanismos de controlo que impeçam todos os que, pretendendo entrar noutro país, têm interesses e/ou objetivos promotores de diversos tipos de crime e de diferentes formas de violência.
Numa altura que se aproximam as eleições para o Parlamento Europeu, seria uma boa oportunidade para que os candidatos a deputados desse organismo apresentassem, como diria Descartes, ideias claras e distintas sobre esta temática tão pertinente nos nossos dias. Que mostrassem propostas conducentes a tornar a europa pioneira no seu contributo para o que Edgar Morin apelidou de “humanismo planetário”; para a globalização da solidariedade humana, digo eu. Porque a Europa não pode ser uma mera “superfície comercial” como se a existência humana estivesse reduzida a uma mera teia de relações marcadamente tecno economicistas.
Jota Eme