IRRITA-ME, SOBREMANEIRA, TUDO ISTO!
Irrita-me, sobremaneira, por esta altura, os cenários dantescos e devoradores dos fogos que grassam um pouco por todo nosso país. Já sei que noutros países também acontece, mas o que me preocupa, por esta altura, é o que se passa no nosso. O que vemos é verdadeiramente trágico e não nos pode deixar indiferentes, naturalmente.
É absolutamente deplorável assistirmos a imagens aterradoras que nos fazem sentir revoltados, indignados e impotentes perante a aflição de tantas pessoas e a destruição incrível de um património indispensável à vida de todos nós. Como conseguimos ser tão descuidados, tão pouco exigentes na prevenção de um fenómeno que já nos deu oportunidades mais que suficientes para aprendermos a mitigar os seus sinistros efeitos?!
Será que ainda não percebemos que não podemos continuar a adiar soluções para este fenómeno dos incêndios? Será que ainda não atingimos que estamos a caminho de deixar, especialmente às próximas gerações, uma série de problemas muito sérios por absoluta incúria nossa? Será que ainda não consciencializámos que a destruição do património florestal é uma agressão à natureza de (im)previsíveis consequências a vários níveis? Será que temos uma tendência coletiva inexoravelmente suicida?! Quero, apesar de tudo, acreditar que não.
A minha revolta é, no entanto, resultado da convicção de que os responsáveis políticos têm sucessiva e incompreensivelmente negligenciado e postergado este grave problema dos incêndios. Já não há desculpas. Continuam incapazes de definir uma estratégia nacional com impacto na diminuição dos efeitos deste fenómeno recorrente e sempre com graves prejuízos, nomeadamente de natureza social, económica e ecológica para o país.
Aparentemente, as causas dos incêndios são, basicamente, sempre as mesmas: temperaturas elevadas, falta de ordenamento do território, negligência dos cidadãos, etc., etc. Acresce, sobretudo ultimamente, a ênfase nas alterações climáticas. O diagnóstico parece estar feito.
Ora, perante a tragédia com réplica cada vez mais desastrosa de Verão para Verão, perguntamo-nos, com natural legitimidade, porque tarda tanto tempo a fazer-se essa reordenação territorial, a formar os cidadãos, a encontrar outras formas de contornar ou pelo menos mitigar os efeitos das alterações climáticas? Quais são os principais obstáculos?
Desde a década de 80 (do século passado) que os incêndios têm sido manifestamente muitos e devastadores na perda de vidas humanas e dos seus bens elementares, e na destruição da floresta portuguesa com inevitáveis prejuízos para a nossa realidade socioeconómica.
Apenas quando chega cada Verão, se reage como se, mais uma vez, tivéssemos sido surpreendidos; como se todo o trabalho de prevenção ao longo do ano tivesse sido em vão ou, ainda pior, que se tivesse revelado sem qualquer qualidade. Convenhamos que as entidades de controlo, monitorização e segurança no que aos incêndios diz respeito, são inúmeras!!!! Há muita gente envolvida. Mas, para quê? Quem conhece, objetivamente, o trabalho dessas entidades e destas pessoas? Como prestam contas? De que forma e quem monitoriza, avalia e responsabiliza essas pessoas?
Fazem-nos crer (pretendem fazer-nos acreditar, diria eu) que os incêndios são uma inevitabilidade. Simultaneamente, como se não bastasse esse falso determinismo, os políticos tendem a colocar o ónus da responsabilidade de grande parte dos incêndios que vão lavrando um pouco por todo o país, na irresponsabilidade individual (pasme-se!) dos cidadãos que, por vários motivos, diz-se, ateiam e provocam incêndios por tudo que é canto.
Ora, há por aí estudos (é o que, como todos sabemos, menos falta no nosso país!), que nos dão conta de que o Estado é o que mais negligencia a floresta que está sob a sua inteira responsabilidade. Que legitimidade tem, então, para colocar o foco da responsabilidade dos incêndios no cidadão comum?! O que é isto?! Quem pode levar a sério os slogans pedagógicos que são profusamente espalhados por todo o lado?! Porque assistimos, calados e acriticamente, a esta ofensa ao cidadão que espera, acima de tudo, que os seus impostos sejam, nesta e noutras matérias, devidamente aplicados?!
O que me parece é que os políticos, de um modo geral (há sempre exceções), sejam de direita, da esquerda ou do centro, são incapazes de uma estratégia antecipatória a médio e a longo prazo; incapazes de, apesar dos avanços tecnológicos, antecipar e coordenar soluções complexas que respondam a problemas complexos, como o dos incêndios; incapazes de pôr em marcha soluções estruturantes e que acautelem os nossos interesses e direitos no presente, bem como os das gerações vindouras. Acaso temos consciência das verdadeiras e incomensuráveis consequências dos incêndios? Por vezes, não parece. São inúmeras e, em última instância, com graves prejuízos para a nossa própria sobrevivência. Essa consciência, só por si, deveria ser pretexto para um maior rigor e preocupação na esfera da prevenção. Chega de desculpas. Chega de adiar. Chega de conversa.
E nem sequer quero ouvir dizer, quase em jeito de maior tolerância e desculpabilização ( o que é ainda pior), que nos outros países europeus e não só, também acontecem os incêndios e que são igualmente devastadores. Talvez as causas sejam as mesmas. Não sei. Provavelmente o marasmo dos responsáveis políticos e de vários organismos e/ou entidades seja igualmente o mesmo. Por outras palvras: por acontecer nos outros países, não significa que possa ser mais desculpável por estar a acontecer no nosso. Com certeza que há causas comuns a todos os países, mas também causas específicas de cada um.
Entretanto, tudo se discute por esses órgãos de comunicação social em geral, como numa passagem interminável de modelos falantes, sempre numa perspetiva reativa e na convicção oca e triste de que daqui para a frente é que vai ser! Ainda não se fez tudo, mas para o ano pode-se pensar melhor: noutras estratégias! noutros meios! noutra organização! noutra atitude! E por aí fora…generalidades…apenas isso! E os incêndios prosseguem, “imperturbáveis”, a sua voracidade incontrolável.
Os especialistas em incêndios, como acontecia por altura da fase mais crítica da pandemia, são tantos que se estorvam; todos reclamam a palavra para nada resolver. E no final, todos chegam, incrível e visivelmente satisfeitos, a um consenso verdadeiramente determinante, admiravelmente sagaz e que cabe numa pequenina palavra: adiar! Ou postergar, como outros, por uma questão de estética discursiva, gostam de dizer!
Os especialistas e os políticos estão, nessa matéria, de mãos firmemente dadas; a sua superior inteligência obedece ao mesmo princípio: tudo que é urgente e estruturante é sempre para o dia seguinte, para o próximo mês, para o ano que aí vem ou, para facilitar ainda mais, durante a próxima legislatura (se se tratar, por exemplo, de quatro anos, até nos esquecemos das soluções que alvitraram!). Neste último caso, quando não há cumprimento do prometido, são sempre invocadas vicissitudes, conjunturas nacionais ou internacionais, sejam elas de que natureza forem! E nós, lá vamos acreditando. Uns mais do que outros, claro!
Os responsáveis dos partidos políticos que ciclicamente vão a eleições também não fazem constar das suas agendas o assunto ou flagelo sazonal dos incêndios. Porquê? Afinal, trata-se de um assunto de particular relevância na vida de cada um de nós e, a médio e a longo prazo, de extrema importância para a qualidade de vida das gerações vindouras e, como já se disse, da própria sobrevivência da espécie humana. Talvez a culpa também seja nossa, pois assistimos, impávidos e serenos, aos paupérrimos programas eleitorais, como se isso não fosse connosco. Mas é. E muito.
Por último, e sem me querer alongar muito mais no assunto, perdoe-se-me a minha ignorância, mas não percebo porque é tão difícil, com tantos recursos técnicos e humanos, continuarmos com dificuldades em identificar, em todo o país, com maior precisão e rigor, os pontos verdadeiramente críticos e, sobretudo, os que são de particular relevância.
Quem não se lembra da calamidade que se abateu sobre Pedrógão? Quem não se recorda do desastre do pinhal de Leiria?! Ainda hoje não percebo porque se descurou, em termos de prevenção, essas e outras situações, naturalmente. Ou, talvez até entenda. Mas se for pelos motivos que eu penso (e outros pensarão o mesmo), então um dia, para além da floresta, arderemos todos. Será aí, talvez, o derradeiro sinal de que deixámos que a mediocridade conseguisse, esplendorosamente, a sua vitória!
Ainda na linha dos meus limitados conhecimentos teóricos e técnicos sobre a prevenção de incêndios, também não percebo o motivo de não se acionar outros meios preventivos, mesmo em termos de “humidificação antecipada”, por exemplo, de determinadas zonas de interesse nacional, a fim de minimizar hipotéticos efeitos de incêndio nessas áreas, como é o caso, diria eu, dos parques naturais.
Nós não queremos (ou se se preferir, deveremos evitar), estados de contingência e de alerta. A gestão do bem comum não pode ser, tragicamente, uma gestão de calamidades, de acontecimentos sazonais e fortuitos; como se a política fosse uma espécie de arte de contornar o acaso; como se essas pseudossoluções adquirissem, naturalmente, o estatuto de norma! É pouco, muito pouco.
Exijamos, assim, a quem nos governa, uma preparação e planificação estratégicas (técnica e humana) capaz de antecipar problemas e propor, atempadamente, soluções que envolvam, também, os próprios cidadãos. Nisso reside a verdadeira arte de governar e a construção de um caminho que possa garantir a salvaguarda do interesse individual e coletivo.
Se não queremos que a crise da democracia se agudize e continuem a assombrar-nos os extremismos políticos, a realidade dos incêndios e de outros assuntos requerem, por parte de quem nos governa, a sabedoria de uma mundivisão interdependente e complexa da realidade (ambiental, social, sanitária, económica, cultural) e, simultaneamente, a capacidade de responder aos desafios atuais na base da antecipação, do diagnóstico e do planeamento atempado.
Jota Eme