Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Bricolage da Escrita

Bricolage da Escrita

MULTITASKING: DE QUE FALAMOS, AFINAL?

O título pode, legitimamente, em virtude do recurso a um estrangeirismo, suscitar algumas dúvidas. Por acaso, de um modo geral, não utilizo. No entanto, por vezes, confesso que gosto de um ou outro. Como por exemplo, deste. Porquê? Não sei.

De forma mais ou menos recorrente somos confrontados, concretamente nos órgãos de comunicação social, com textos reflexivos e científicos sobre os impactos do uso das tecnologias, nomeadamente sobre a sua influência no nosso cérebro.

As suspeitas sobre alguns dos malefícios da nossa dispersão pelo écran táctil vão tendo, efetivamente, alguma confirmação por parte da ciência.

Sob o título, “O Smartphone Está a Mudar o Nosso Cérebro”, o jornal Expresso refere, ainda, no subtítulo, que a “Sobrecarga de estímulos está a fazer diminuir a capacidade de concentração e ameaça a criatividade e o raciocínio abstrato.” Da minha parte, atrever-me-ia a acrescentar, que também pode sair fragilizado o desenvolvimento da capacidade de distinguir o essencial do acessório.

Segundo o mesmo jornal, um especialista do Massachusetts Institute of Technology (MIT) chega mesmo a afirmar que “Estamos a assistir a um processo de degradação cognitiva.” O que é especialmente grave.

O facto de, geralmente, estarmos regular e sistematicamente ocupados no desempenho simultâneo de várias tarefas (por exemplo a estudar/trabalhar e, simultaneamente, a receber e enviar mensagens a amigos no telemóvel, a ver as fotografias do Instagram, a enviar e a receber mails, a espreitar a TV…), faz com que percamos, em média, segundo estudos nesse sentido, 23 minutos, para recuperar o grau de concentração que tínhamos aquando da realização da tarefa principal. Com a agravante de que, se estivermos a desempenhar uma tarefa e, simultaneamente focados noutros estímulos, possam aumentar os erros, ou seja, possa diminuir a qualidade do nosso desempenho; perdemos eficiência. A ciência vem, assim, confirmar, o que já se suspeitava.

Segundo os especialistas das ciências do comportamento, a quantidade de estímulos dispersa a nossa atenção e, consequentemente, diminui a própria qualidade e complexidade do nosso pensamento; perdemos a capacidade de refletir criticamente; sai fragilizada a inovação e a criatividade, já que estas são o resultado de interconexões de pensamentos. “Quando se tenta fazer multitasking, não se chega tão longe no caminho do pensamento porque o cérebro está constantemente a mudar de [foco] e a recuar”, refere-se no jornal Expresso, citando um dos especialistas do MIT, Earl Miller.

Alguns especialistas vão mais longe afirmando que o multitasking ao pôr em causa a capacidade de concentração, prejudica gravemente aquilo que contribui, decisivamente, para a produção cultural e científica, como sejam o raciocínio abstrato e o raciocínio lógico.

Também não será agradável, numa conversa entre amigos, vermos os nossos interlocutores, enquanto falam connosco, sistematicamente a espreitar os seus telemóveis, respondendo aos seus amigos, a escrever um texto de última hora de natureza profissional, ou, pior, entretidos no “laikar”. Neste “vaivém” do cérebro, não há foco que resista, além de, neste caso em concreto, contribuir para desvalorizar a dimensão social do ser humano.  

O pior é que nos tempos que correm somos mesmo encorajados a fazer multitasking.

Cada vez mais os jovens e os menos jovens, da chamada era digital, estão rodeados de gadgets e de diversos écrans que, segundo estudos científicos recentes, têm contribuído para que os jovens que passam mais tempo frente ao écran, apresentem um quadro de “mais sintomas de ansiedade, depressão, desatenção e hiperatividade.” Apesar das evidências, há, no entanto, quem, mesmo assim, não esteja convencido.

E no mundo profissional? O que se passa? Também somos incentivados a fazer multitasking?! Claro que sim. Mais do que incentivados a fazer multitasking, sentimos, paradoxalmente, prazer em ser autoexplorados.

No reino da arrogância meritocrática, toda a responsabilidade é colocada ao nível de cada pessoa.  O desempenho pessoal depende apenas do mérito de cada um ( perspetiva não consensual) e é, geralmente, traduzível em eficácia e eficiência; como se o valor do nosso trabalho fosse meramente mercantil. Mais: a eficácia e eficiência depende, muitas vezes, da cedência ao multitasking, que é como quem diz, em termos muito simples, fazer muitas coisas ao mesmo tempo, obrigando-nos a reconfigurações permanentes (recuar, mudar…) como se quiséssemos dar o salto para o homem meio-máquina, algo que os transumanistas almejam.

Obrigados à polivalência no desempenho profissional, mas também vítimas de múltiplas distrações, sujeitos à hiperinformação, é cada vez menos o tempo para o autocuidado, para a reflexão, para o contacto físico com os amigos e com os que, de um modo geral, merecem a nossa atenção. Estarmos sempre “ligados”, com sobrecarga de estímulos, faz disparar o sentimento de tristeza, de ansiedade, de angústia, de sentimento de vazio, por vezes, até, de algum asco existencial.

Mas também podemos ver o mutitasking, como uma consequência da ausência de pausas. Quase desapareceram das nossas vidas os rituais. Essas “paragens”, esses “encontros sagrados” constituíam um balanço que nos despertava para a nossa existência, para a existência do outro e para a existência do mundo; a atenção exclusiva num acontecimento, num lugar, num espaço, é uma raridade.  Agora, carregados de estímulos, vítimas da obesidade informativa, tudo gera em nós um sentimento de incompletude, de obstáculo permanente à pausa. Indispensável nestes assuntos (e noutros), o filósofo Byung -Chul Han diz: “O regime neoliberal abole as formas de cerramento e conclusão para aumentar a produtividade […] A incapacidade de concluir também tem muito que ver com o narcisismo…”

Tudo parece tornar-se, cada vez mais, um mundo do que o Byung- Chul Han designa de “não-coisas”: “A hipercomunicação digital, a conectividade ilimitada, não cria nenhuma união, nenhum mundo. Antes, tem por efeito isolar, aprofundar a solidão (…) o desastre da comunicação digital deriva de não termos tempo para fechar os olhos [..] a ordem digital é dominada pela informação”. Carregados de um mundo que não queremos, aspiramos, desesperadamente, por um mundo que nos ofereça uma pausa, que nos dê a oportunidade de desfrutar do silêncio.  

“O silêncio é alheio à informação […] o silêncio é um fenómeno da atenção. Só uma atenção profunda produz silêncio. Mas a informação despedaça a atenção […] afundamo-nos no ruído[..] hoje estamos rodeados de não-coisas, de distrações informativas, que fragmentam a nossa atenção. Por isso, destroem o silêncio, mesmo quando são silenciosas.” Habitamos um mundo cada vez menos coisificado, entramos num ambiente incorpóreo e reduzido ao écran: “a janela digital dilui a realidade, transformando-a em informações que digerimos”, diz-nos, por fim, o filósofo Byung- Chul Han.

O bastião da realidade, aquela que nós aprendemos, radica no écran. E já quase não damos por isso. Confundimos - ainda que alguns digam que não - a realidade com a que aprendemos no écran. O Smartphone toma cada vez mais conta de nós, e não o contrário. É como se tudo estivesse acantonado naquele espaço digital.

Ao fazermos depender a nossa existência de um mundo cada vez mais virtual também contribuímos para a mudança e/ou alteração de valores.  A autenticidade é, agora, espalharmos aos quatro ventos, a nossa intimidade e privacidade: “A sociedade da autenticidade é uma sociedade da intimidade e do desnudamento. Um nudismo da alma confere-lhe caraterísticas pornográficas”, diz, muito bem, pelo menos na minha opinião, Byung- Chul Han. Ou seja, conclui o filósofo: “As relações sociais são tanto mais verdadeiras e autênticas quanto mais privacidade e intimidade forem reveladas.” Infelizmente, isso assume contornos preocupantes. Todos conhecemos pessoas que estão nesse caminho.

Que fazer?

É difícil. Mas podemos tentar dar menos tempo aos nossos gadgets que nos distraem de cada um de nós e do próximo.  Concentremo-nos em menos tarefas. Foquemo-nos nos nossos amigos, não através das redes sociais, mas privilegiando a sua presença física. Retomemos alguns rituais que contribuam para no pacificar, serenar: ler um livro, partilhá-lo com os nossos amigos, fazer uma caminhada, convidar um amigo para uma conversa num café, visitar os nossos pais ou avós mais vezes. Façamos mais experiências da proximidade. Entrar numa igreja, mesmo que não se seja religioso, e fazer aí uma pausa. E tantas outras coisas. Desligar por momentos o telemóvel e tudo o que nos pode ligar eletronicamente ao mundo, é também uma boa opção. Pode-se experimentar. O nosso cérebro e, sobretudo, a nossa alma, agradecerão.

Não deixemos, parafraseando Byung, que a paciência e a espera como estado de espírito continuem em processo de erosão.

 

Jota Eme

 

 

Nota: Para esta breve reflexão foram também tidos em consideração os seguintes livros de Byung- Chul Han:

 Não - Coisas – Transformações no Mundo em que Vivemos (Relógio D´Água).

 Do desaparecimento dos Rituais (Relógio D´Água).

A sociedade Paliativa (Relógio D´Água).

 

1 comentário

Comentar post

Mais sobre mim

imagem de perfil

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub