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Bricolage da Escrita

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SOB O DOMÍNIO DA INFODEMIA E OS SEUS IMPACTOS

Não dominamos a informação, a informação é que nos domina a nós”!  Byung- Chul Han

O termo “infodemia” é utilizado por um dos incontornáveis filósofos da atualidade, Byung- Chul-Han, no seu livro intitulado, Infocracia.  Julguei que o conceito de “infodemia”, poderia ajudar a refletir e a compreender não só a complexidade da era digital, mas também o fenómeno da comunicação que lhe está associado.

O objetivo deste texto é, pois, refletir sobre a “era da informação digital” e nalguns dos seus impactos. Não é propriamente uma visão pessimista da era digital. É, sobretudo, uma simples reflexão (o mais realista possível) sobre a influência da informação digital no nosso quotidiano.

Também sabemos que, à semelhança de outras realidades, as “ferramentas digitais são simultaneamente instrumentos de liberdade e instrumentos de servidão” (Edgar Morin 2020, 63).

A informação, hoje, funciona como um vírus, como uma infodemia (“… grande fluxo de informações que se espalham pela internet sobre um assunto específico, que se multiplicam de uma forma muito acelerada” - in wikipédia), que nos “consome” sob diversas formas, como se a tarefa de impedir os seus efeitos de contaminação estivesse fora do nosso alcance; como se não houvesse antídoto para fazer cessar uma determinada “malignidade” sobre nós.

O que parece dar-nos a sensação de liberdade na procura de informação, torna-nos, afinal, de forma sub-reptícia, em dominados, em subjugados. Assertivo, como sempre, Byung-Han esclarece-nos: “Quem é verdadeiramente livre não são os indivíduos, mas a informação. O paradoxo da sociedade da informação reside no facto de os seres humanos serem prisioneiros da informação” (2022, 13).

Estamos, assim, na era da informação, perante uma outra espécie de domínio que não se faz através de proibições, de coação física ou de outras formas mais musculadas, mas antes através da sedução. Sim, somos subtil e eficazmente convidados a consumir informação como se, em última instância, isso significasse a nossa redenção, a imperiosa necessidade de participar numa “liturgia” comunitária que nos dá, simultaneamente, a sensação (falsa) de liberdade, mas que apenas nos entorpece cada vez mais.

A ilusão de que dominamos a informação através, por exemplo, de instrumentos como o touchscreen inteligente, torna-nos, paradoxalmente, seres cada vez mais vigiados e controlados, colocando-nos, também, ao serviço do consumo (do capitalismo da vigilância) ou seja, fazendo de nós vítimas de uma espécie do totalitarismo consumista.

Estamos perante uma conceção de informação que pretende ser hegemónica, total, com margem de liberdade para quem a consome, absolutamente mínima ou nenhuma. Não temos quase espaço para atuar, para criar, para refletir. Estamos, cada vez mais confinados às migalhas do “clicar”, do “gostar” e do “postar”.

Determinadas por uma complexa teia de algoritmos, as notícias vão sendo dadas em quantidade infernal, como se o objetivo fosse, justamente, eliminar qualquer hipótese de contingência, de incerteza, de dúvida; o importante é confinar a explicação de tudo ao reino do quantificável, criando uma realidade sustentada em dados, sem “narrativa”. Quantificar para melhor dominar, parece ser o lema. Talvez, como refere Edgar Morin, tenhamos de contrariar esta tendência substituindo “a hegemonia da quantidade pela hegemonia da qualidade; a obsessão do mais, pela obsessão do melhor" (2020, 97).

O domínio, refere Chul Han, “oculta-se atrás do que há de mais agradável nas redes sociais, da comodidade dos motores de busca, do timbre embalador dos assistentes de voz ou da solicitude obsequiosa das smarter apps” (2022,14). Detendo os nossos dados, preveem os nossos comportamentos, ficam conhecedores dos nossos gostos e das nossas tendências, construindo sobre nós um determinado perfil de que se apoderam e, consequentemente, dominam.

A criação de um “perfil” pode dar a ilusão de que nos distinguimos no meio da multidão, das “massas” anónimas. O “perfil” torna-nos “gente importante” e não um “zé-ninguém”! O “perfil” foi recategorizado, já que, noutros tempos, “só os criminosos é que tinham perfil.” Agora somos todos detentores de um perfil comportamental!

Ora, esta problemática da informação leva-nos a uma outra questão particularmente importante relacionada com o poder: quem detém, hoje, o poder, designadamente o político? A resposta prevê-se fácil e damo-la na convicção de que os que nos acompanham já a têm na ponta da língua: sim, é isso, são os que dominam a informação!

Aqui chegados, e sem querer abusar de Chul Han, introduziríamos aqui outro conceito bem interessante: o de “infocracia”!

A democracia, doravante, fica também ela prisioneira da ditadura da informação, sua refém; “degenera em infocracia”, assim se expressa o nosso autor.

A democracia que deveria crescer e consolidar-se numa base social de participação ativa dos cidadãos, informados, sobretudo, pelos livros, redunda, afinal, na mediacracia, na sua submissão aos meios de comunicação social digitais. Temos muitos exemplos, quer a nível nacional, quer internacional. Ou seja: temos evidências desta conversão da democracia em mediacracia!

E para mal dos nossos pecados, a democracia emerge, cada vez mais, como espetáculo, como entretenimento, fazendo-nos distrair, propositada e estrategicamente, do essencial, da preocupação com o bem comum. 

diversão é o meio privilegiado de afirmação da democracia! Também poderíamos dar exemplos bem elucidativos do que estamos a afirmar. Não resisto, neste âmbito, ao recurso a mais uma citação do meu “amigo” Chul Han, e que é absolutamente esclarecedora: “A mediacracia é ao mesmo tempo uma teatrocracia”! (2022, 21). Pela sua assertividade, é daquelas frases que gostava de ser eu o autor!

Ainda no âmbito da democracia na sua forma privilegiada de encenação ou de teatralização, basta vermos os debates televisivos, onde podemos assistir à fuga a temas importantes, à falta de um discurso racional sóbrio e explicativo sobre as fragilidades, as prioridades e as soluções para resolver os problemas do país e do mundo.  

Tudo, no poder político, enforma da tendência para privilegiar a performance, o estilo, em detrimento do conteúdo, daquilo que verdadeiramente tem interesse; o vazio de ideias tanto para o presente, como para o futuro é confrangedor, sobrepondo-se, de forma descarada, uma “política telecrática de imagens” que parece escarnecer da verdade! Repare-se nas explicações dos políticos, a propósito das últimas cheias. Parece que tudo redundava, numa explicação simplista e única: as alterações climáticas. Tendo a sua influência, a explicação é manifestamente insuficiente, simplista. Afastar responsabilidades políticas também faz parte de mais uma estratégia para a “fuga” à verdade!

Na telecracia, não há lugar para a “democracia complexa”, como a designa D. Innerarity. Para este filósofo espanhol a democracia complexa não é compaginável com “[…] o curtoprazismo, miopia política, presentismo, governança antecipatória pobre”. A democracia na sua forma de telecracia, está consubstanciada numa governança onde, recorrendo, ainda, àquele filósofo, “Não se antecipam os cenários futuros, não se dá suficiente atenção aos riscos, persiste-se nas políticas manifestamente insustentáveis do ponto de vista social, económico ou ambiental. Descuram-se os problemas emergentes, os riscos futuros, as necessidades e oportunidades futuras, os benefícios distantes” (2021, 185-186).

Sem querermos, neste contexto, aprofundar esta noção de democracia complexa, sempre se adiantará que ela se configura como uma estratégia sustentada e sustentável, contra as simplificações tecnocráticas e populistas, visando, prioritariamente, a abordagem holística dos grandes problemas e das suas soluções, quer no presente, quer no futuro, resistindo à política do entretenimento, das emoções exacerbadas, das encenações, da pressão imediata, da sedução capciosa e da atenção mediática.

Em vez de cidadãos verdadeiramente esclarecidos, capazes de participar ativamente nos assuntos de interesse público, a mediacracia como via de afirmação da infocracia, tende a reduzir-nos à condição empobrecedora de espetadores passivos de uma encenação política, mais visível em épocas de eleições, onde quase sempre vemos afundar-se a verdade, os grandes temas e a autenticidade dos “representantes”!

Em eleições de maior projeção internacional, como as dos EUA, é manifesta a tendência para os discursos simplistas e fragmentados no Twiter, para utilização dos social bots na disseminação das fake news e para a proliferação de teorias da conspiração, sem que os protagonistas tenham um real interesse nas verdadeiras causas sociais, económicas, culturais, ambientais, entre outras. Ou seja: a infodemia, entendida como “propaganda viral”, prejudica seriamente a democracia e promove o populismo e outros radicalismos políticos.

E se, nalgumas situações, a comunicação digital e as redes sociais, em geral, podem contribuir para promover e apoiar grupos de contestação, nomeadamente a regimes ditatoriais, surgindo como instrumentos de exercício de cidadania, como parece ter acontecido mais recent noemente no Irão ou na China, na maioria dos casos “os enxames digitais não formam um coletivo responsável e politicamente atuante” (Byung-Chul Han 2022, 31)

A comunicação digital, na opinião de Chul Han, não promove “cidadãos emancipados”, uma vez que a informação que daí advém é baseada em algoritmos, “não é livre nem democrática”, difunde-se sem ser filtrada pelo espaço público, ainda que produzida na esfera do privado e “enviada para espaços privados”.  Ou seja: para Byung – Chul, na comunicação digital, não há propriamente comunidades públicas, no sentido político, ou seja, capazes de refletirem e defenderem causas comuns, do interesse público. Byung chega mesmo a afirmar que as “redes sociais intensificam esta comunicação sem comunidade”. Aliás, nesta matéria, é ainda mais assertivo, quando afirma: “A partir dos influencers e followers não se forma um público político. As communities digitais são uma forma de comunidade enquanto mercadoria. Na realidade, são commodities. Não são capazes de ação política” (2022, 32). Há, aqui, latente a ideia de que nada pode ser consolidado nestas comunidades, onde tudo é efémero e sem o suporte de qualquer vínculo.  

A democracia não pode, pois, resultar de uma comunicação unívoca, da tribalização digital, da ausência do ato político do escutar. Ela exige a interação dialética que fundamenta e alimenta o discurso, o diálogo, a narrativa, a construção da mundividência.

Na comunicação digital, em última instância, a opinião do outro não existe; o outro, como interlocutor privilegiado, não está presente. Quando são as máquinas a criar a informação adequada ao nosso perfil, gera, simultaneamente, em nós, convicções cada vez mais arreigadas e dogmáticas, reduzindo-nos à condição de “autodoutrinados” e, consequentemente, a um posicionamento autista perante o outro.  Sempre com algum receio do recurso abusivo a Byung- Chul Han, aqui deixamos, uma vez mais, a sua a voz: “a crise da democracia é, antes de mais, uma crise do escutar {…] o que provoca a crise da democracia não é a personalização algorítmica da internet, mas o desaparecimento do outro, a incapacidade de escutar” (2022, 34)

O que tem contribuído para a “desconsolidação” da democracia é a tendência crescente para a substituição da racionalidade sustentada no discurso, na argumentação, na narrativa, na escuta do “outro” para uma racionalidade digital apoiada por dados, pelo quantitativo, onde os algoritmos são, doravante, os novos “argumentos”, a “novilíngua”.

A Inteligência Artificial através de uma "visão dataísta do mundo" tem, seguramente, a pretensão de não só dispensar o discurso humano, como dispensar qualquer forma de autonomia e de liberdade, enquanto qualidades intrinsecamente humanas.

Doravante, com a crescente racionalidade digital, será a IA a determinar tudo: o nosso presente e o nosso futuro, dispensando, inclusivamente, as conceções políticas enquanto visões do mundo e da vida. Para quê, perguntam os “dataístas”, a liberdade individual, se a IA é capaz de nos dar as soluções para tudo; capaz, enfim, de um conhecimento total.  

Seremos, pois, cada vez mais, controlados por um saber que determinará toda a nossa ação, manipulados e manipuláveis pelo neototalitarismo digital. Para os crentes dataístas, não há lugar para a autonomia e liberdade humanas, para quem essas qualidades são uma invenção, pertencem ao domínio da “metafísica”.  

A comunicação digital arrastou consigo, também, uma crise da verdade, contribuindo, por essa via, para a crise da democracia. Esta está, visceralmente ligada à verdade. Ora, quando a comunicação entra no reino do aditivo, do cumulativo, do quantificável, perde-se todo o mundo da narrativa, do sentido, da identidade das coisas, da orientação, da segurança. Em última instância, perde-se, e isso é o mais importante em democracia, a verdade, ou a sua noção. Por si só, a informação não tem capacidade orientadora, nem confere coesão à sociedade. Só a verdade encerra em si essas potencialidades. Byung-Chul Han não pode, na nossa opinião, deixar de ser convocado mais uma vez. Diz ele: “A crise da verdade difunde-se quando a sociedade se desintegra em grupos ou tribos, entre os quais já não é possível qualquer entendimento, qualquer designação vinculativa das coisas […]” (2022, 52).

Quando, no mundo da informação digital, julgamos ter, de forma simples, tudo à nossa disposição, para quê pensar, procurar, interrogar, indagar, etc. Nada disso faz sentido, quando temos na ponta dos dedos o “mundo” ao nosso alcance. Este encantamento produz em nós, estrategicamente, viciação, dependência e, consequentemente, a erosão e/ou atrofiamento da nossa autonomia, da nossa liberdade, da nossa condição de seres pensantes, de cidadão ativos. E isto é tudo que o neototalitarismo digital pretende: substituir o regime da democracia pelo totalitarismo da informação, dar-nos a sensação de que somos livres, sem o sermos, substituir a verdade pela mercantilização geral das relações humanas e da sociedade em geral; impor uma “verdade” que, alegadamente, servirá para resolver todos os nossos problemas e nos levará à felicidade suprema. Será?!

A terminar, apenas acrescentaria que a melhor forma de resistir ao “neoautoritarismo digital” é não nos deixemos submeter aos “simplismos”, aos “unilateralismos” e aos “dogmatismos”; não abdicarmos, à boa maneira kantiana, das perguntas vitais e radicalmente humanas, tais como: “o que eu posso saber?”, “o que eu devo fazer?”, “o que eu posso esperar?” Só aceitando, na prática, este desafio, estaremos a respeitar e a reconhecer a riqueza da complexidade humana. É uma via privilegiada para a valorização da narrativa, para a construção da verdade e consequente coesão social, para a valorização da autonomia e livre-arbítrio, processos incontornáveis na consolidação da democracia e na afirmação do Homo complexus.

Edgar Morin pode, muito bem, traduzir, de forma exímia, o desafio que acabámos de descrever, quando refere a emergência do humanismo regenerado como aquele que […] Reconhece a complexidade humana feita de contradições […] a nossa animalidade e a nossa ligação umbilical com a natureza, mas reconhece a nossa especificidade espiritual e cultural […] a nossa fragilidade, a nossa instabilidade […] os nossos delírios, a ignomínia das matanças, torturas, esclavagismos, a lucidez e a cegueira do pensamento, a sublimidade das obras-primas de todas as artes, as obras prodigiosas da técnica e as destruições operadas por meio dessa mesma técnica” ( 2020, 110-111).  

 

Jota Eme  

 

Bibliografia de referência:

Infocracia, de Byung-Chul Han, Relógio D`Água, 2022

Mudemos de Via – As lições do Coronavírus, de Edgar Morin, Edições Piaget, 2020

Uma Teoria da Democracia Complexa, de Daniel Innerarity, Ideias de Ler, 2021

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