SOBRE A RETÓRICA DA MERITOCRACIA
“O ideal da meritocracia não é a igualdade, mas justificar a desigualdade” (Michael J. Sandel)
Nem sempre o mérito andou, como hoje, associado ao esforço e/ou empenho individuais.
Nos nossos dias, o mérito tende a emergir como garantia de sucesso e como fator determinante de alavanca social. Ao fazermos depender o mérito da responsabilidade individual e do trabalho árduo de cada um, estamos a admitir, pelo menos implicitamente, que está salvaguardada a igualdade de oportunidades na ascensão social e na consequente obtenção de sucesso.
Claro que a par da responsabilidade individual, do trabalho árduo, ainda temos de contar, complementarmente, com a fortuna de sermos, eventualmente, detentores de faculdades naturais de caráter excecional. Não basta, portanto, trabalhar afincadamente para atingir o sucesso. É necessário mais qualquer coisa que, por sorte, alguns têm mais do que outros: determinadas competências quase inatas, digamos assim. Em todo o caso, o que prevalece, hoje, é a ideia de que o mérito resulta, essencialmente, do esforço de cada um e do seu empenho e não tanto da sorte!
Se virmos no mérito apenas um instrumento de elevador social, talvez estejamos a assumir uma perspetiva reducionista e, até certo ponto, elitista. Pode parecer contraditório o que estamos a afirmar, mas não é. O mérito e o sucesso que “produz” não deve estar confinado a uma visão escatológica, como se o único e último objetivo do mérito fosse a ascensão social.
A partir do momento que o mérito não depende só do trabalho, mas também de determinadas capacidades, e se, além disso, ainda tivermos em consideração que ele é, inteiramente, da responsabilidade individual, talvez a meritocracia possa resvalar para uma dimensão pouco democrática. Como mais à frente também se dirá, é bem possível, até, que estejamos perto de uma visão arrogante de mérito.
Se olharmos um pouco para trás, não há muito tempo, o mérito andava de mãos dadas com uma certa “hereditariedade”, com privilégios adquiridos quer através de tradição familiar, quer através do poder económico. O mérito estava indissociavelmente ligado a uma herança social e económica; não era conquistado, mas adquirido, um legado familiar quase sempre inviolável, inquestionável e exibido de forma inusitadamente arrogante.
Entretanto, as sociedades foram evoluindo, complexificando-se, e a noção de mérito também foi ganhando outro significado e alcance.
Pretensamente mais democrático e visto como possibilidade de alavanca social acessível a todos, independentemente das suas origens sociais culturais e/ou económicas, o mérito migrou para outro tipo de categoria. Ou se preferirmos, foi recategorizado.
Doravante, sobretudo com as correntes neoliberais, especialmente a partir dos anos 80, mais ou menos, o mérito tornou-se uma qualidade ao alcance de qualquer um. Alegadamente, ter-se-ia, inclusive, democratizado, vamos preferir dizer deste modo.
O mérito, sobretudo enquanto exercício de responsabilidade individual, traz como corolário alguns perigos, nomeadamente a tendência para o converter numa atitude narcísica e anti empática, ou espoletar sentimentos de grande frustração e de castigo e/ou de punição pessoal, para os que se sentem como perdedores, para os que, apesar de trabalharem afincadamente, não logram atingir o sucesso ou, ainda pior, não são socialmente reconhecidos. É quase caso para dizer que, encarado o mérito deste modo, parece que estamos perante os santos (os meritocratas) e os pecadores (aqueles a quem não é reconhecido o mérito).
Com efeito, esta conceção individualista de mérito, aproxima-nos da sua santificação, como se fosse um desígnio ao alcance apenas de alguns eleitos e/ou bafejados pela sorte, perdendo-se, também, nesta visão minimalista de mérito, a importância da comunidade, da natureza social do ser humano. Voltaremos a esta ideia.
Por outro lado, há uma imagem triunfalista do mérito, traduzível, sobretudo, na deificação do sucesso e na humilhação dos perdedores. Só os que triunfam, pelo seu trabalho e esforço árduo, são virtuosos, merecem o sucesso que têm e as honrarias que, por via disso, lhe prestam os outros. Quanto aos restantes, parecem merecer a sua condição de perdedores e consequente condenação ao sentimento de humilhação pessoal e social. Como se o mérito pudesse sobreviver nesta dicotomia social e culturalmente absurda.
Para já, adiantar-se-ia, nesta parte, que o “virtuoso meritocrata” deve essa sua “condição”, à existência do outro, justamente daquele que teve a infelicidade de não ter as mesmas condições para, como ele, atingir, o sucesso. O mérito só tem, pois, sentido, numa perspetiva comunitária.
Existe, pois, uma arrogância meritocrática consubstanciada na ideia de que só alguns estão predestinados a alcançar o êxito; de que o mérito depende exclusivamente de cada um; de que o mérito é, insistimos, da inteira responsabilidade individual, descartando-se qualquer responsabilidade social e política no “insucesso” dos “outros”! Mais: o mérito está visceralmente associado a eficácia e a eficiência, a uma conceção de vida tingida, manifestamente, do imperativo do quantificável.
Se, por um lado, estávamos à espera de ver vencida a conceção de mérito assente na tradição hereditária, parece que, em última instância, temos, com o chamado neoliberalismo, uma conceção de mérito, também ela elitista, reducionista. Não se veem grandes diferenças entre uma e outra conceção. À medida que formos avançando, talvez possamos compreender ainda melhor esta paradoxal aproximação entre uma e outra conceção (de mérito).
Hoje, existe uma retórica à volta da meritocracia que, na prática, resulta na falta de igualdade de oportunidades para conseguir sucesso, na dificuldade crescente da ascensão social e na primazia do “credencialismo”, em detrimento de profissões que requerem menos habilitações literárias. Nem a pandemia alterou este paradigma, quando nos despertou para a importância de determinadas profissões que não exigindo credenciação superior, se mostraram determinantes para o nosso bem-estar.
A meritocracia assenta, sobretudo, numa base eminentemente materialista, pois o mérito é visto como a capacidade individual de, através do trabalho árduo, produzir riqueza, aqui entendida no seu sentido mais lato. O virtuosismo da meritocracia está, assim, associado, a uma espécie de merecimento individual. Ou seja, está aqui patente uma perspetiva focada no indivíduo (individualismo exacerbado do neoliberalismo), pois tudo que tenho, devo-o apenas a mim, ao meu esforço, ao meu empenho.
Esta visão manifestamente individualista do mérito remete-nos para uma ética de meritocracia cujas bases principais são a responsabilidade pessoal e o trabalho árduo e que alimentam a retórica da ascensão social.
Ora, ao fazer-se depender o mérito de fatores como o esforço e a responsabilidade individual, pode, esse princípio basilar - para aqueles que apesar do seu esforço não atingem determinados objetivos - ser, no mínimo, frustrante, deprimente, desesperante, provocar, enfim, um sentimento de culpa, ou seja, ser gerador de consequências ao nível da saúde mental.
A partir do momento que se cria a convicção social da meritocracia essencialmente resultante do trabalho árduo, corremos o risco de contribuir para uma sociedade ainda menos solidária. Com efeito, parte-se do princípio errado de quem não atinge o êxito, não trabalhou o suficiente e, por esse motivo, não merece ser ajudado; é como se fosse um indigente que não merece consideração e/ou reconhecimento da sociedade. E isso é, no mínimo, perigoso e manifestamente avesso à inclusão. É, como diz Michael Sandel, “o lado brutal da meritocracia”.
Por outro lado, a meritocracia criou outro tipo de preconceito que, apesar de atenuado, ainda persiste: a ideia de que o diploma universitário é sinónimo de mérito e, consequentemente, como uma das principais condições de ascensão social e como sinónimo de maior respeitabilidade social. Assim, subestima-se aqueles que, apesar de não possuírem diploma superior, são, como já se referiu anteriormente, a propósito do período pandémico, determinantes para o funcionamento e organização da nossa sociedade.
Simultaneamente, e seguindo um pouco a linha de M. Sandel, a tendência para o despotismo meritocrático sobrevalorizando o credencialismo pode, em última instância, contribuir, decisivamente, para um discurso tecnocrático consubstanciado na arrogância de soluções simplistas, desvalorizando a participação crítica dos cidadãos nas principais decisões e soluções políticas.
A preponderância dos peritos e/ou dos especialistas emerge do pretexto de que o cidadão comum não tem tempo para se informar convenientemente. São eles, por isso, pelo seu mérito, que têm direito de prestar a alegada informação correta; o púlpito é deles, pertence-lhes por mérito próprio! Cria-se uma espécie de clivagem entre os “sábios” e os “ignorantes”. Esta abordagem também resulta da mesma conceção de meritocracia que temos vindo a abordar: uma meritocracia que privilegia as elites que, presumivelmente, são as únicas capazes de dirigir os nossos destinos! Como se, o saber fosse, como noutros tempos mais recuados, propriedade apenas de alguns “eleitos”.
O saber especializado e tecnocrático que se impôs sobretudo a partir das décadas de 70 – 80, talvez obcecado com a via do “delírio do transumanismo”, não conseguiu antecipar soluções para, pelos menos, minimizar os problemas que hoje a todos nos preocupam, nomeadamente, as alterações climáticas. Um saber fechado à sociedade em geral, centrado na especialização, pode não ser a melhor forma de salvaguardar o interesse comum e ajudar a desenvolver e a consolidar uma cultura de valores humanos universais. Talvez, parafraseando, parcialmente, o título de um livro de Edgar Morin, tenhamos, urgentemente, de, para alcançarmos este desiderato, mudar de via.
A meritocracia só faz sentido, quando é solidária; quando reconhece o outro, convicta e empaticamente, como um “nós”, independentemente do seu estatuto social, cultural e profissional. Porque, caso contrário, não saímos da meritocracia determinantemente egocêntrica e arrogante: “Uma sociedade que habilita as pessoas a progredir e celebra essa mobilidade ascendente emite ao mesmo tempo um severo julgamento contra aqueles que não o logram fazer” ( Michael Sandel).
Hoje, para ultrapassarmos a visão arrogante da meritocracia, deveremos encarar o mérito como o resultado de condições favoráveis multifatoriais que se interpenetram: familiares, socioculturais, económicas, entre outras. A meritocracia deve ser, ainda, abordada numa perspetiva humanista, ou seja, como fator enriquecedor e de crescimento da sociedade; como uma “mais-valia coletiva”.
Proclamar a meritocracia ou a elite meritocrática como causa da abundância e, simultaneamente, vermos o crescimento de desigualdades sociais é, no mínimo, uma contradição, criando- se, inclusivamente, o sentimento de vitimização e promovendo a revolta por parte de quem não beneficia de tanta riqueza.
Cabe ao sistema educativo, nas suas práticas, desde os primeiros anos de escolaridade até à própria universidade, promover cidadãos reflexivos e críticos, capazes de pensar assuntos relacionados com o bem comum e “fazer juízos práticos informados sobre assuntos públicos” ( M. Sandel). É uma forma de resistir à tentação do mérito como fator de desigualdade e de exclusão.
Atrever-nos-íamos a dizer que promover o mérito na escola é dar aos alunos condições para desenvolverem iniciativas próprias, facilitar a sua responsabilização em todas as fases do processo educativo: desde a planificação curricular à avaliação das suas aprendizagens. Importa, ainda, fortalecer laços de ligação comunitária entre eles, ajudá-los na consciencialização de que todos podem dar o seu contributo para a construção de um projeto comum, seja ele o de uma escola melhor ou, numa dimensão mais alargada, o de uma sociedade mais justa.
O mérito deve ser assumido como o contributo individual dado à sociedade - independentemente de qualificações académicas e/ou da condição social e económica - visando o bem comum. Mesmo que façamos depender o mérito do esforço árduo, de determinados “dons”, de múltiplos fatores, ou de outra condição qualquer, ninguém é autossuficiente. Como diz, e para terminar, Michael Sandel, “[…] viver numa sociedade que aprecia os nossos talentos é um acaso de fortuna, e não mérito próprio.” O mérito é sempre comunitário, nunca uma qualidade radical e exclusivamente individual.
Jota Eme
Bibliografia de referência para este texto: A tirania do Mérito – O que aconteceu ao bem comum? Michael J. Sandel, Editorial Presença, 2022.